quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

TAREFA

A tarefa que nos impõe a vida
é a de abraçar o vento
semear o invisivel
e compor
no traço do tempo
linhas que se cruzam pela eternidade

Caso contrário adoecemos
paralisados em nossas fortalezas
de certezas duvidosas
mergulhados em memórias
no excesso do passado

e quando notamos, 
estamos alheios a nós
despidos de sonhos
prostrados nas horas cinzas
renunciando o futuro
a renovação

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

domingo, 5 de julho de 2020

Anoitece

Anoitece
e resquícios de luz clareiam memórias
paisagens nebulosas no divagar do tempo
espaço de lembranças do amor

 Anoitece
te vejo no tumultuar de corpos afora
 parece de verdade que os edifícios murmuram teu nome
e as esquinas proferem aromas
daquela noite que não acabou

quarta-feira, 10 de junho de 2020

reveste teus sonhos
com o manto do acreditar
desperta teu fogo
com faíscas de paixão
vives, intensamente,
pois a morte, meus amigos,
está a dois passos de distância
e nunca se sabe quando é cedo
ou tarde demais
para recomeçar
Um retrato bem angulado
pode dissimular a verdade
mas o que realmente acontece dentro de nosso peito
isso - as redes sociais não mostram.

O que acontece conosco quando deitamos para dormir.
Quando estamos aflitos, ansiosos, nervosos, com medo.
Quando somos afinal humanos - isso elas omitem.

De tempos em tempos venho para cá
observar um pouco da vida de meus conhecidos
e os que aparentemente estão amordaçados de felicidade
parecem no fundo querer esconder algo...

Até que ponto é saudável ser bombardeado
por status forjados pela pretensão da invulnerabilidade
numa sociedade tão miserável e doentia
e continuar sentindo-se cada vez mais traído
pelo perpétuo sentimento de angústia...

É preciso saber delimitar o que é real
e o que é aparente
entre fotos, postagens, discursos...
por que afinal de contas de que vale um sorriso instantâneo
quando não se consegue mais sorrir naturalmente?

De que vale a beleza da natureza se ela só tem valor se for postada no Instagram?
A vida foi suprimida pela tecnologia. De tal modo que, hoje, as pessoas sentem necessidade em mostrar às outras o que estão fazendo - o que no fundo, talvez, seja uma tentativa de mostrar a si mesmo - que nada do que estão fazendo é verdadeiramente aquilo que elas querem fazer...

Buscando por um sentido eu busco a aprovação desse sentido no olhar do outro, que é o meu espelho. Mas essa fuga de mim mesmo só gera mais angústia, e aumenta gradativamente a minha necessidade pela aprovação de terceiros. Minha vida acaba se resumindo ao que pensam de mim, ao que falam de mim, ao que eu aparento ser para o outro. O Ser, em seu sentido último, como aquilo que me constitui e me move, é ofuscado pelos distintos modos de Ser que me apresentam, e o ritmo desse mundo maluco, que me exige que eu me torne algo - de preferencia que tenha sucesso - apenas contribui para me deixar mais aflito quanto ao que verdadeiramente sou.

Faz sentido?
Não é de hoje que os tiranos revestem-se com o manto da religião para ludibriar seus servos.

O plano de governo do recém presidente da República Jair Bolsonaro apresenta, já em sua capa, uma passagem bíblica:

"Conheceis a verdade e a verdade vos libertará." João 8:32

Na mitologia grega, Salmoneu, rei da Élida, era filho de Éolo e irmão de Sísifo. Tentou igualar-se a Zeus, imitando seus raios. Quis que seus súditos lhe atribuíssem honras divinas e oferecessem sacrifícios. Foi atirado no inferno por Zeus.

Enquanto no medievo ainda se podia crer que houvesse um castigo no além, àqueles que agissem de forma má, hoje a dissolução das certezas religiosas encerra em nós a possibilidade do castigo eterno, jogando-nos de bruços sobre as injustiças do mundo carnal.

Mas ainda há tempo. Sempre há. Enquanto estivermos vivos, seremos a mentira que nossos magistrados não conhecem: o valor da vida e da dignidade humana.
"Os seres humanos passam tanto tempo acumulando, pisoteando, negando a outras pessoas. E, no entanto, quem são os que nos inspiram mesmo depois de mortos? Os que serviram aos outros, e não a si mesmos."

Wangari Maathai

Todo animal é mágico

Eu tenho um amigo que jamais irei esquecer. O nome dele é Zé. É um vira-lata garboso, preto brilhante, dorso arqueado, pernas altas, olhar carinhoso. Eu o adotei despretensiosamente, sob certa pressão gerada pela carência que nos assalta quando estamos distante e nos sentido só. Quantos ensinamentos o Zé me passou, durante esse tempo em que vivemos juntos. Afirmo de certo que a responsabilidade por uma vida é uma atividade que nos modifica profundamente. Hoje o Zé tem em média trinta anos, mas continua, apesar dos indícios de sua maturidade, sendo uma criança boba que faz festa por tudo. Protetor, zela pela casa e pelos seus integrantes, como um cão de guarda treinado. Nunca atacou ninguém e, quando o faz, rosna, apenas para alertar de que os intentos já foram decifrados. O zé é assim, ele sabe o que voce é, antes mesmo da chegada. Me recuso a acreditar que um dia o Zé me deixará. Um dia, quando eu amanhecer sem ele ao meu lado, não chorarei. Zé nunca morrerá.

Dizem que os animais são irracionais. Eu vou mais além. Animais pensam, sim, e também sentem e, ainda por cima, falam, cada espécia sua linguagem. E até cantam, por pura alegria de viver, mais melodiosos e afinados que muita voz humana.

Eu amo muito meu amigo.
As vezes existe apenas a espera.
E da espera inferimos o corte.
Preciso, etéreo, imaginário.
O corte que sangra mas não mancha.
A mancha que escorre mas não pinga.
A gota que cai mas não absorve.

Pendemos, então
através do que criamos e do que se consome
malabaristas manejando intentos
corações machucados passeando
pela calda das constelações

E assim nos protegemos
no abrigo de outros corpos buscando aquele corpo
envoltos, como um caracol, pela casca da resiliência
suportamos a pressão, como uma ostra
e geramos uma pérola em nosso ventre machucado

A poesia urge como um grito mudo
do fundo de nossas entranhas, desacreditadas
e pela palavra projeta-se luz
nossos dias enfim tornam-se mais claros

As vezes existe apenas a espera.
E não há muito o que fazer senão abraçá-la
amá-la, contemplá-la, até que não se faça mais
Até que a espera se torne vontade
e a vontade, antes escrava da posse
torne-se Amor.
Comentário breve sobre a irracionalidade coletiva:

Se, para debatermos idéias, usamos argumentos, a ciência da lógica hoje já não nos serve, pois nas redes sociais e nas redes midiáticas nada mais encontramos senão discursos repletos de falácias e excessos.

Mesmo após todos os dados estatísticos que apontam que o aumento da força coercitiva do Estado e suas estratégias de combate à violência urbana não são a resposta ao problema da violência social, estes parecem não possuir qualquer interesse (uma vez que capacidade certamente o tem) de alterarem sua ótica fascista.

O outro é sempre um bandido, um possível delinquente, indo de encontro próximo à visão militarizada contida nos princípios do treinamento de nossa força policial. Mas, ainda assim, fogem à qualquer tipo de aproximação entre o pensamento do candidato e os valores militaristas, justificando-os como o desejo do "cidadão de bem", que está cansado da "corrupção".

Tampouco adianta expor-lhe as contradições de seus argumentos, através de reportagens que expunham um sentido diverso e muitas vezes contrário às tuas idéias de origem obscura. Estes não se preocupam com as fontes: uma vez parciais, sempre parciais, e utilizam este argumento da "imparcialidade" dos veículos de informação para ajustarem a realidade à sua visão deturpada e doentia.

A redução da complexidade cognitiva dos problemas encontra sempre vazão na violência física, cujas terminologias, além de redutoras, encerram todo problema da desigualdade social no ato mais simples e atroz da existência humana: o extermínio.

Que fácil seria se a resposta para todos os déficits da nação fossem dadas com um fuzil em mãos. Teríamos, assim, um momento Áureo em todas as civilizações cujas forma de governo fosse militarizada.

Mas um aluno atento aos conteúdos básicos da história do ensino fundamental não teria dificuldades em acertar na prova uma questão que relaciona o governo militar com o bem estar social e à garantia de direitos elementares: seria acertadamente falso, sem nem precisar pensar muito a respeito...

Que esperar portanto daqueles que apoiam o ódio explícito quando tiverem que utilizar a violência como recurso para transpor seus problemas pessoais na vida prática?

(...)

Em noites escuras a melancolia prevalece

Em noites escuras
a melancolia prevalece
é simples
pôr uma arma na cabeça.
mas minha arma não mata
ao menos não de imediato
se matasse seria interessante
poesia + assassinato
a janela, envidraçada
transparece o sopro da vida
lá fora o carro, automotivo
exige uma outra saída.
e agora?
me espere
mas o tempo não conta hora
deriva, progressivamente,
tempo inteiro afora
e o homem
e as coisas
pensam numa saída
ser homem ou ser usado
assumir uma função nessa vida.
o homem criou as coisas
para usar e não ser usado
mas hoje nem homem e nem as coisas
sabem bem do seu lado.
amar? peça uma porção.
os passos, metalizados.
o coração, tornou-se palco
de retalhos silenciados.
Omita-se e admita,
este é o nosso legado:
viver e morrer
amar e ser amado.

17 06 15
Quem cala não consente
As flores sabem mais
Em silêncio elas sentem
Segredos vegetais
Segredos vegetais.

Dercio Marques
A música eletrônica e a espiritualidade.

A espiritualidade que emana da música eletrônica é um tema raramente explorado e debatido por pensadores, espiritualistas, produtores e DJs. Alguns dos gêneros eletrônicos são capazes de nos levar a estados meditativos e de expansão da consciência, sem uso de qualquer substância psicoativa. O som eletrônico por si só, emana vibrações muito sutis para o corpo físico, mas que causam um tremendo impacto para o espírito.

O Trance é um dos estilos musicais que revive o conceito original da música onde os ritmos são usados para alterar estados de consciência e trazer a espiritualidade e dissociação.

A complexidade das canções consistem em até 9 ou 10 camadas simultaneamente (contra as 4 padrão para uma canção de rock ou 3 para o hiphop), no trance não há sons designados/necessários. Na verdade as músicas utilizam todo e qualquer instrumento para tecer uma teia complexa, todo instrumento tem o seu lugar, desde guitarra até saxofones.

O ritmo do baixo e do drum ao intercalar com outros sons pode provocar uma espécie de realidade temporal ou virtual. É muito fácil perder-se na música ou esquecer-se inteiramente e, ao fazê-lo, é possível esquecer todos os pensamentos estranhos e negativos por completo e voltar-se toda a atenção a ela. Além disso, a natureza progressiva das faixas pode ter um efeito igualmente significativo sobre as funções corporais; ao progredir em ondas, uma música em poucos segundos pode ter tanto um efeito estimulante quanto relaxante no ouvinte.

A progressão e a aceleração gradual do ritmo pode trazer um transe hipnótico no ouvinte (daí o nome do gênero) e distorcer o sentido do tempo. Tal impacto pode regular processos fisiológicos, harmonizar a taxa de um coração e sintonizar a química do cérebro de forma semelhante.

A diferença destes estilos musicais como o Trance, é que o foco geralmente não está sobre o conteúdo das letras das canções mas no som como um todo. Neste sentido, os vocais são geralmente pouco mais do que uma extensão da música, apenas um fragmento de uma palavra cantada, sampleada e mixada na música de tal forma que se torna indistinguível. Os vocais então se tornam apenas mais um instrumento na track e aumentam a complexidade da música sem envolver uma razão para ser compreendida.

Nestes casos, o foco é voltado mais para a percepção sensorial do que a racional (em que o conteúdo lírico desempenha algum objetivo político ou poético). O objetivo é despertar emoções e estados mentais sem o uso de palavras ou sem uma compreensão das mesmas. A maioria das músicas deste estilo tendem a ter um conteúdo lírico que é simples na natureza, e embora as palavras podem ser poéticas e comoventes, os temas são simples e diretos. O gênero é uma experiência emotiva, essencialmente.

Um estado alterado de consciência é provocado por qualquer mudança no funcionamento normal da consciência psicológica. Isso pode acontecer por varias razões; música, drogas e religião servem como meios específicos para alcançar essa mudança.

A música eletrônica pode ajudar a alcançar uma percepção alterada e uma dissociação completa da mente e do corpo.

O estilo trance, em especial, é estudado para estimular as ondas theta do cérebro, associadas com os níveis de sono. É um estado de relaxamento extremo onde ocorre o sono pesado, um fenômeno que é quase inatingível em um estado consciente. O único método conhecido para chegar ao mesmo estado é o da meditação intensa.

Autor Desconhecido
Sonhar é acordar-se para dentro: de súbito me vejo em pleno sonho e no jogo em que todo me concentro mais uma carta sobre a mesa ponho. Mais outra! É o jogo atroz do Tudo ou Nada! E quase que escurece a chama triste... E, a cada parada uma pancada, o coração, exausto, ainda insiste. Insiste em quê? Ganhar o quê? De quem? O meu parceiro...eu vejo que ele tem um riso silencioso a desenhar-se numa velha caveira carcomida. Mas eu bem sei que a morte é seu disfarce... Como também disfarce é a minha vida! Quintana
Sobre a luta por igualdade de direitos entre sexos. Recentemente ouvi dizer - e os exemplos que vivo convergem a este mesmo ponto - que o feminismo é como uma teia de aranha; basta-se um resvalo sequer, que se situe contrário a seus ideais, e adeus identidade: és homem, macho, patriarca, opressor e p(r)onto. Sabe-se que os fios destas teias são usados para formar estruturas e desenhos diferentes, o que varia também em função da finalidade da construção. A viúva-negra, a título de exemplo, faz um desenho completamente irregular, que nada lembra a precisão geométrica de algumas teias. Tomemos esta espécime como exemplo. Se trazida ao âmbito político, a estrutura denotaria problemas de organização, e, aqui, problemas de organização no movimento, apesar de que, neste sentido, ela indique uma característica específica da espécie. Mas, então, qual a finalidade da construção desta teia a qual fazemos todos parte? Imaginemos pois que a teia se distribui por toda cidade. E o sentido que damos aqui a ela é justamente o sentido de organização política e poder de alcance. Assim, os fios da teia, retilíneos e espessos, alastram-se e se apoderam em parte dos espaços nos quais fazem-se presentes. E quando uma ação (refletida ou não) pende de encontro a sua estrutura temos, quase que imediatamente, a impossibilidade de defesa: estamos já presos e julgados, pelo simples fato de penetrarmos (conscientes ou não) em seus domínios. É preciso que se tenha cuidado. Um olhar, uma expressão, um modo de dizer, um posicionamento. Tudo meticulosamente pensado e calculado para não parecer demasiado opressor. Reavaliação de discurso é ótima, mas pera lá, todos somos machistas, opressores, patriarcais? Sim, somos homens, mas, antes disso, somos seres humanos. E como seres humanos resultantes em grande parte de uma formação cultural específica, devemos ter em mente os funcionalismos e discursos que nos são engendrado desde a mais tenra idade e -para além disso- esforçar-se por compreender que nem todos possuem as condições de possibilidade de reavaliação desse discurso. Compreensão, não justificação. A evidência que se tem dado ao movimento é essencial. A luta é necessária. É preciso, de fato, combater o patriarcado. Mas a que custo? Por quais meios? Discursos de ódio impressos pela cidade? Rudes generalizações..Não consigo ver este tipo de ação como uma luta política por igualdade de direitos, tampouco consigo imaginar bons frutos resultantes dessas práticas. Se formos combater opressão com opressão, entramos num ciclo-vicioso nocivo e irrefletido, que acaba por alimentar a incontestável desigualdade presente em nossas relações sociais. Pende aqui minha consideração e apelo: lutemos. Mas lutemos juntos. Precisamente juntos, desfazendo este separatismo milenar, mitigando esta opressão histórica que -ainda que alguns não concordem- não é saudável à ninguém.
Um cometa passava... Em luz, na penedia,
Na erva, no inseto, em tudo uma alma rebrilhava;
Entregava-se ao sol a terra, como escrava:
Ferviam sangue e seiva. E o cometa fugia...

Assolavam a terra o terremoto, a lava,
A água, o ciclone, a guerra, a fome, a epidemia;
Mas renascia o amor, o orgulho revivia,
Passavam religiões... E o cometa passava,

E fugia, riçando a ígnea cauda flava.
Fenecia uma raça; a solidão bravia
Povoava-se outra vez. E o cometa voltava...

Escoava-se o tropel das eras, dia a dia:
E tudo, desde a pedra ao homem, proclamava
A sua eternidade! E o cometa sorria...

Olavo Bilac
Isso nós sabemos. Todas as coisas são conectadas como o sangue que une uma família... O que acontecer com a terra acontecerá com os filhos e filhas da terra, O Homem não teceu a teia da vida, ele é dela apenas um fio. O que ele fizer para teia estará fazendo a si mesmo. Ted Perry

Se eu temesse a morte

Se eu temesse a morte
não faria poesia.

Seria piloto de caça,
alpinista, mergulhador
afinal
ninguém arrisca mais a vida que um poeta
que morre todo dia dando vida ao papel.
é preciso cometer loucuras em nome da vida ou da ilusão é preciso forjar estrelas em um mar de sangue eternamente é preciso inventar tormentos prover a dor o desencanto é preciso tecer a guerra em trajes torpes sem precisão é preciso fugir com a professora de línguas para conhecer o mundo e um dia voltar para contar que o mundo [esse que te corrói as entranhas] é o mesmo em qualquer lugar. valder valeirão

abismo

De tudo que escrevi, até então, nada fora mais preciso que este poema: Palavra que alça o sentido do inexprimível conjunto de rearranjos infindos impressões de um coração bobo e de uma mente cheia de fantasia... Me perco no abismo que criei dentro de mim a sombra, a dúvida, o terror da certeza ...
Por trás das máscaras do medo, do sonho, do inverossímil nos escondemos humanos. Por trás das amarras do real, do desafeto, do incomunicável resplandecemos solitários. Por trás das ilusões da enfermidade, do credo, do inabalável nos salvaremos em vão. valder

Precisão

O que me tranqüiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição. Clarice Lispector
Rapidamente avançamos no caminho do tempo e deixamos para trás a verdade sobre nós mesmos Sentimos a entronização daquele processo esterilizante no qual a vida real fica inexoravelmente do lado de fora da filosofia nestes instantes evoco a minha eterna criança abstraindo do mundo um pouco de amor uma pitada de poesia...
Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe
entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.

Clarice Lispector

A que chamamos Morte

Hoje me vi embevecido de poesia
e se eu me dispusesse a escrever um texto
certamente sairia um poema:
porque há coisas que existem em mim
que não me foram planejadas.

Aliás, muitas das coisas que existem
já existiam antes de tudo
e diante desse tudo, eu, pequeno, penso nelas
como uma criança pensa em seu aniversário.

Eu gostaria as vezes de tratar das coisas
como tratava antigamente, antes de pensar em tratá-las
era tão natural, apenas ser, e as coisas passavam por mim
e não havia angústia ou ansiedade
ou até mesmo o medo de que os planos dessem errado
esse medo que nos acompanha no dia-a-dia, sabe?
ele, não havia.

Ainda hoje vejo
brincando, naturalmente, sem nenhum rancor
parte daquele que sou, na imagem da criança que fui
e diante do espelho
o traço do tempo confere completude a imagem:
Envelheci. E diante disso, lá atrás
(atrás do espelho, atrás de mim)
existe uma força oculta
grandiosa
insolúvel
a que chamamos
Morte.

Flutuar acima da superfície

Assisto diariamente pessoas passando por pessoas, tratando-as como coisa qualquer. A lua se apresenta acima de nós e abaixo dela estamos vidrados em nossos celulares, fones no ouvido para não ouvir o ritmo urbano, escondidos do mundo em nossas fortalezas de concreto, enaltecendo os ideais da Revolução Francesa pelo Facebook. Ao sairmos de casa nos preocupamos se temos dinheiro suficiente para a cerveja, se conseguiremos saciar nosso apetite sexual, se fumaremos aquele baseado ou se encontraremos aquela pessoa que ficamos semana passada e não gostaríamos nem um pouco de vê-la por hoje. Quando vou a grande centros urbanos nada me deixa mais vazio que notar que ninguém ali se importa com meu nome, minha história, meu passado. Que não há o por quê deles se importarem com isto. Que jamais será importante para eles importarem-se com isso. E que há tantos ali que já perderam a esperança no homem, que sobrevivem à sombra dos restos, dormindo dentro das lixeiras para não morrer de frio e sobre as calçadas para não morrer da vida. Mas um dia ouvi dizer que era libertador não ser notado. E lembrei desses aí que fazem da rua sua morada. É libertador sim não ser notado quando não se quer ser notado, quando estar só faz parte dos planos, e é preciso saber marcar com precisão quem se liberta do quê, ou se a liberdade consiste em não ser notado, ainda que regido pelas mais diversas forças coercitivas, pois, se assim o for, em certo sentido, somos todos livres; mas ser notado e ser julgado são coisas distintas, e não implicam, como parecem, uma na outra. Sendo assim não me parece portanto que há liberdade onde não se é notado. O que há, entretanto, é descaso, insensibilidade para com o outro. Talvez no começo seja interessante, quando a força do hábito ainda não imprimiu em nós suas marcas, mas e depois, dia-após-dia, nessa profusão de ruídos e pessoas, agindo como máquinas, como formigas num grande formigueiro, correndo incessantemente atrás de seus sonhos, deixando pra trás vidas que poderiam ser suas, sonhos e projetos que permaneceram estendidos no varal da vida, todas elas certas, boas ou más, todas elas vítimas! Somos julgados o tempo todo e a aparente desatenção nos olhos do outro não é indício de caráter; pelo contrário, é um sintoma de declínio.

Um discurso sobre o método

Ele se encontrava sobre a estreita marquise do 18º andar. Tinha pulado ali a fim de limpar pelo lado externo as vidraças das salas vazias do conjunto 180 1/5, a serem ocupadas em breve por uma firma de engenharia. Ele era um empregado recém-contratado da Panamericana - Serviços Gerais. O fato de haver se sentado à beira da marquise, com as pernas balançando no espaço, se devera simplesmente a uma pausa para fumar a metade de cigarro que trouxera no bolso. Ele não queria dispersar este prazer misturando-o com o trabalho. Quando viu o ajuntamento de pessoas lá embaixo, apontando mais ou menos em sua direção, não lhe passou pela cabeça que pudesse ser ele o centro das atenções. Não estava habituado a ser este centro e olhou para baixo e para cima e até para trás, a janela às suas costas. Talvez pudesse haver um princípio de incêndio ou algum andaime em perigo ou alguém prestes a pular. Não havia nada identificável à vista e ele, através de operações bastante lógicas, chegou à conclusão de que o único suicida em potencial era ele próprio. Não que já houvesse se cristalizado em sua mente, algum dia, tal desejo, embora como todo mundo, de vez em quando... E digamos que a pouca importância que dava a si próprio não permitia que aflorasse seriamente em seu campo de decisões a possibilidade de um gesto tão grandiloqüente. E que o instinto cego de sobrevivência levava uma vantagem de uns quarenta por cento sobre o seu instinto de morte, tanto é que ele viera levando a vida até aquele preciso momento sob as mais adversas condições. No seu bolso, por exemplo, depois que se fora o cigarro, só restavam a carteira profissional e algumas poucas moedas, insuficientes para tomar o ônibus lá na Central do Brasil, numa hora em que os trens já teriam parado. Até a Central, ainda dava para ir a pé, quando ele costumava andar de cabeça baixa, não por um sentimento de humilhação em particular, mas como uma forma de achar moedas, o que não era tão raro assim, uma vez que, com a depreciação crescente do valor dessas moedas, muitas pessoas não se davam mais ao trabalho de curvar-se para pegá-las, quando as deixavam cair. Antes de pegar o serviço, hoje, no turno das quatro horas da tarde, que se estenderia até a meia-noite, ele hesitara bastante em gastar o dinheiro da passagem. Mas o vazio no estômago falara mais alto e ele usara parte dessa grana com um cafezinho, enchendo três quartos da xícara com açúcar, o que lhe proporcionava umas tantas calorias, embora ele não pensasse assim, em termos de calorias, mas da diminuição da vontade de comer e, como requinte, que um cigarro, mesmo pela metade, era bem mais saboroso depois de um café. Ele meditara também sobre as condições meteorológicas, olhando para o céu e concluindo que o tempo continuaria firme, o que significava que ele poderia passar a noite num dos bancos ou gramados do centro da cidade. Costumavam causar-lhe tédio, quando dormia na rua, as manhãs sem destino até a hora de pegar o serviço, procurando distrair-se olhando o mar e os aviões na ponta do Aterro, perto do aeroporto, ou frangos giratórios nos fornos envidraçados ou, nos cartazes de cinema, mulheres nuas e homens de ação. Mas este era um problema para amanhã e depois de amanhã, no máximo, porque no terceiro dia sairia o pagamento. Ele era um homem que vivia nas imediações do presente, pois o passado não lhe trazia nenhuma recordação agradável, em especial, e o futuro era melhor não prevê-lo, de tão previsível. A data de pagamento, porém, era um marco cronológico ao qual ele se apegava. O sujeito que o recrutara por um salário mínimo lhe dissera que ele ainda tinha sorte, pois o desemprego grassava no país. Era um sujeito que gostava de usar verbos desse tipo, de dicionário, que lhe pareciam conceder dignidade e pompa às suas palavras, embora ele não chegasse a materializar em sua mente tais substantivos abstratos. Autoridade e importância, sim, eram prerrogativas das quais ele se revestia em seu cargo, ele ali sentado com a gravata e a palavra, enquanto que os homens que desfilavam à sua frente permaneciam de pé e mudos, a não ser por certas respostas quase monossilábicas como “sim senhor”, ou “não senhor” quando se tratava de vícios como a cachaça. Se audiência fosse um pouco mais qualificada, ele discorreria também um pouco mais sobre os problemas do país, que provinham do atraso do povo, a desonestidade e incompetência dos políticos, agravadas pelo gigantismo do Estado. Na intimidade do lar, ele apontava ainda causas como as condições climáticas, uma colonização de degredados e a mistura de raças. Ele era um homem da iniciativa privada numa posição de comando intermediário, embora achasse que ganhava pouco, o que era amenizado pela perspectiva de subir alguns degraus, desde que fosse perseverante e duro até o ponto da inflexibilidade. E o nome Panamericana se revestia para ele de uma aura multinacional, apesar de não ser mais do que isso, uma aura esperta que, a bem da verdade, contaminava mesmo o homem lá na marquise, em seu uniforme com aquelas letras gravadas significando para ele alguma coisa que não entendia bem e por isso respeitava, algo ligado a competições esportivas que o Brasil disputava. Alguma coisa imponente, sem dúvida, tanto é que eles eram proibidos, em tese, de vestir os uniformes fora do horário do trabalho, justamente para evitar que os empregados manchassem aquele nome envergando-o em botequins ou bancos de praça e gramados. Mas a perspectiva de passar a noite num desses dois últimos locais trazia em seu bojo a vantagem de que, não indo para casa, ele não presenciaria o que lá estivesse se passando, com a mulher e os três filhos diante de uma despensa - que era como eles chamavam alguns caixotes empilhados totalmente vazia. Não que ele estivera pensando nisso em seu trajeto rumo à marquise, muito pelo contrário; ele costumava desligar-se dos problemas da casa tão logo punha os pés na rua. Sabia que as mulheres eram capazes de verdadeiros milagres, como uma contabilidade não escrita de ovos e farinha tomados emprestados umas das outras na vizinhança, mas se um homem se encontrasse por perto todas as queixas recairiam sobre ele. Pelo menos era o que ele pensava, quando estava pensando nisso. Tais aflições subsistiam, porém, apenas como uma espécie de latência dentro dele - uma ausência boa - ali na marquise, e não teriam aflorado juntamente com o próprio meio de livrar-se delas, caso ele não identificasse os gritos em coro das pessoas lá embaixo como pedidos para que ele pulasse. Não que ele se dispusesse a ceder àqueles apelos, bem entendido; apenas descobria, um tanto perplexo e até fascinado, que esta era uma alternativa plausível para um ser humano como ele, em dificuldades, mas de posse de todos os seus movimentos. E isso lhe concedia uma liberdade insuspeitada e uma leveza, uma vez que um fio muito tênue podia separá-lo da meta comum à espécie, que é não sofrer. Pode-se indagar a respeito do medo. Se ele não tinha medo de estar ali suspenso? Mas é preciso não esquecer que ele estava habituado a ocupar posições delicadas no espaço. Outro, em seu lugar, talvez se magoasse com o pouco caso que a assistência dava à sua vida. Mas, como já vimos, ele também se dava pouca importância, como um coadjuvante muito secundário, quase imperceptível, de um espetáculo polifônico. Por isso, também jamais se cristalizara a hipótese de forçar o destino com uma arma na mão, assaltando pessoas físicas e jurídicas, embora passasse por sua cabeça, como na de todo mundo, de vez em quando... E nesse espetáculo havia os que se colocavam como espectadores nos mais baixos degraus da fama e ele mesmo, se fosse numa dessas manhãs em que flanava sem destino, teria se postado na platéia para matar o tempo, mas sem voz ativa, porque era um homem sóbrio em seus atos, modesto. Então não sentiu mágoa e até sabia, sem trazê-lo à consciência que em ajuntamentos semelhantes existiam aqueles, como certas mulheres (às vezes já com uma vela na bolsa), que passavam aflitamente a mão no rosto e diziam falas melodramáticas como “pelo amor de Deus, não”, ou algo do gênero, e também aqueles outros que chamavam a polícia e os bombeiros, sendo que um carro da primeira corporação já chegava neste momento. Ele era um homem respeitador das leis e dos poderes e, em nome de tal respeito, medo até, levantou-se imediatamente para retornar à limpeza das vidraças, quando um silêncio de expectativa neutralizado por um clamor de incentivo veio lá de baixo, para logo depois se transformar numa vaia, quando perceberam que ele era apenas um homem trabalhando, ainda que em condições precárias que sugeriam risco, ação, emoção, coragem. E esta vaia, sim, foi recebida por ele com mágoa, porque os gritos anteriores tinham sido algo assim como o entusiasmo da arquibancada diante de um atleta e, de repente, era como se ele houvesse executado ajogada errada. Com o escovão e o pano nas mãos, e o balde a seus pés, ele virou-se novamente para a platéia e deu um passo miúdo adiante, para ouvir distintamente os gritos de “pula”, “pula”. O fato é que ele jamais estivera num palco, num pedestal, e isso afetara sua modéstia. Não é preciso conhecer a palavra pedestal para saber que as estátuas repousam sobre uma base. Como também não é preciso conhecer a palavra polifônico para ouvir as muitas vozes e o conjunto de sons da cidade. E haveria sempre alguém que pudesse narrar isso por ele, até que as condições socioeconômico-culturais da classe operária se transformassem no país e ela pudesse falar com a própria voz. Quando isso acontecera, por exemplo, na Inglaterra, dera origem a fenômenos inesperados como os Beatles e os angry young men, jovens zangados. Já na União Soviética ou em Cuba, o brilho de algumas vozes fora abafado em nome de prioridades econômicas indiscutíveis. Ele vira, na abertura dos Jogos Olímpicos de Moscou, a saúde e a beleza da juventude soviética. Como todo mundo, no Brasil, ele dera o seu jeito de comprar um aparelho de TV. Comprara de um rapaz vizinho, sem exigir nota fiscal ou indagar sobre a marca ou procedência. O rapaz era um jovem zangado brasileiro e assaltava pessoas físicas, preparando-se para encarar as jurídicas, do ramo bancário. Ambos não conheciam os Beatles. As estátuas, ele conhecia bem, apesar de não ler as placas. Perambulava muito diante delas e intuía que eram erigidas (embora não utilizasse tal verbo, mais do estilo do chefe do Departamento de Pessoal da Panamericana) em homenagem a pessoas que teriam realizado feitos notáveis, tanto é que estavam ali em exibição pública, como exemplo moral. Não era bem o caso dele, certo, mas ele também estava provando do poder sobre a massa, como alguns daqueles homens ilustres. E isso ampliava, de repente, de maneira literalmente vertiginosa, a sua consciência social. Aquele pessoal lá embaixo, como ele próprio, a mulher e os filhos, não era gente bonita, bem alimentada e imbuída de elevados propósitos; pelo contrário, era preciso aplacá-los com sangue e circo. Então ele chegou a refletir - se se pode chamar assim o clarão de raiva que o atravessou - sobre métodos violentos de transformação da sociedade. Alguém mais cultivado poderia contrapropor métodos constitucionais de mudança. Mas isso poderia levar décadas ou um século, ou talvez não acontecesse nunca. E o caso dele era premente: a situação financeira de carência absoluta, agravada pelo fato de ter se destacado tanto nos últimos instantes na Panamericana, de forma incompatível com a política de pessoal da Companhia. E havia o fato principal de que ele tinha uma só vida para viver, apesar de, paradoxalmente, andar ventilando, nesses últimos momentos, como um exercício, a hipótese de livrar-se dela. Diante disso, a sociedade como um todo era uma abstração. Ele estava se tornando agora, sempre vertiginosamente, um individualista. Se tivesse uma arma na mão, talvez houvesse disparado a esmo. Ele não tinha tal arma e só poderia disparar contra si mesmo, em forma de uma tristeza pontiaguda. Em compensação isso ampliava sua consciência poética, talvez dando razão àqueles que vêem na arte uma redenção do sofrimento. Aproximava-se a hora do crepúsculo, uma hora bonita, ele também achava. Para realçar tal beleza na melancolia, havia a possibilidade desta tornar-se também a hora do seu crepúsculo, que ele podia fazer belo e significativo. Se pulasse, transformar-se-ia numa personagem de jornal, um mártir da crise econômica, merecendo mais do que um simples registro, porque teria conseguido transformar a avenida Rio Branco lá embaixo, assim batizada por causa de um barão (que ele desconhecia), num pandemônio, com o soar das sirenes e um carro do corpo de bombeiros que ocupara um bom trecho do asfalto, o Estado usufruindo da oportunidade de retribuir o dinheiro arrecadado dos contribuintes. Um cordão de isolamento já fora estendido para que ele não caísse em cima das pessoas e, sem sabê-lo, ele se avizinhava de um ideal romântico que é o de morrer jovem e no auge da fama. Só não era belo. Era um rapaz de vinte e cinco anos, embora não parecesse. Aos argumentos de praxe de que tudo isso de nada lhe serviria depois de morto, ele poderia contrapropor - se além de romântico fosse poeta ou filósofo - que estava gozando com a máxima intensidade os lances dramáticos que podiam anteceder a morte, como num duelo ao entardecer. A cidade era inquestionavelmente bela, com seus picos e montanhas, o oceano, algumas aves marinhas, outras não, um avião que pousava naquele instante, com seus passageiros que observavam a paisagem de um ângulo diverso do seu. É claro que não existe a beleza sem que a observe. Mas, por outro lado, não haveria tal intensidade na contemplação, no caso dele, não fosse certa iminência. Uma iminência que tornava mais perceptível do que nunca, aos seus ouvidos, a polifonia sinfônica das ruas, como se ele fosse um apreciador sofisticado de música aleatória, o que, quando nada, demonstrava que não é preciso estar a par de certas definições e correntes estéticas para usufruir dos efeitos e dos materiais que as compõem, que acabavam por se reunir numa espécie de zumbido cósmico que parecia nascer de dentro dele. Havia também qualquer coisa de existencialista nele, com esse negócio de viver intensamente um momento limite e dar-lhe um sentido, como alguma personagem de Jean-Paul Sartre, além de ter sido acometido, há pouco, de uma boa dose de náusea existencial em relação a si próprio e à massa humana. Por outro lado, mesmo em condições socioeconômicas mais favoráveis, haveria o absurdo da existência. Ele era um absurdo. Uma consciência largada no mundo, que podia morrer a qualquer instante e não era feliz. É claro que, do ponto de vista de uma abordagem psicanalítica, sua ânsia recém-aflorada de pular era passível de ser analisada sob outros ângulos, alguns menos, outros mais românticos ainda. O fato de sua força voltar-se contra ele próprio, num momento em que não podia dirigi-la para fora, era somente a parte mais óbvia da questão que, com um mínimo de paciência, poderia ser explicada a ele por algum psiquiatra do INPS, que a seguir o consideraria apto a retornar ao trabalho. Ele não era burro, apenas não crescera num ambiente propício a aprimorar sua educação. Quanto ao narcisismo, refletido no ato de pavonear-se no espelho da massa, ele poderia canalizá-lo para atividades socialmente mais ajustadas, como progredir no seu ramo de vidraças e assoalhos, até deixá-los tão impecavelmente limpos que lhe devolvessem uma imagem sem distorções e fantasias perniciosas. Ou, no caso de suas ambições ultrapassarem o âmbito do emprego para atingir o mundo dos espetáculos - como ocorria agora -, sempre restaria a possibilidade de buscar uma chance num programa de calouros da TV, ou no futebol, mas isso, no segundo caso, se não houvesse se passado em sua infância um acontecimento absolutamente traumático: ter sido expelido, aos empurrões, de um time de garotos, por deficiência técnica possivelmente decorrente de suas deficiências físicas, ainda que ele fosse escalado na ponta-esquerda, posição que no Brasil costuma tornar-se a mais próxima possível da reserva. Tanto é que se comentassem com ele que o Brasil, em toda a sua história esportiva, jamais tivera em suas seleções um só ponta-esquerda que fosse o astro do time, ele captaria numa fração de segundo a origem e o espírito da coisa, remetendo-a a seu próprio caso e isso, sem dúvida, seria plenamente um insight, que o faria rir numa descarga nervosa, talvez convencendo-o a aceitar melhor seus próprios limites, pois ele nem mesmo era canhoto e tornava-se extremamente difícil cruzar a bola com o pé trocado. E ainda lhe restaria, uma vez diluída uma prejudicial imagem idealizada, torcer e identificar-se com um time que lhe devolvesse, de vez em quando, a sua dedicação com um campeonato; afinal nem todos podem pisar o palco. Mais difícil - e romântico - embora não impossível, desde que se encontrassem as expressões adequadas, seria aprofundar com ele a coisa no sentido de entendê-la, a sua tentação repentina de pular, como um desejo de retorno aos braços e seios maternos e talvez até a uma vida uterina, ao indiferenciado que a todos iguala, não houvesse sido esta sobressaltada por tentativas de morte contra ele e ainda por cima com a utilização de métodos inadequados - talvez sentidos por ele como maremotos no líquido em que boiava -, embora, depois de ele ter vindo insistentemente à luz, fosse encarado, por seu raquitismo, como um castigo e uma dádiva, o que já o colocava no mundo desde o início como um paradoxo e diante de um conflito. Pois o mesmo fato que o levava a ser sacudido e surrado quando chorava durante as noites, por sentir um oco inexplicável nas entranhas, era razão para ser embalado e amamentado em plena via pública, sob marquises (!) dos edifícios, porque a mãe complementava o magro orçamento doméstico mendigando no centro da cidade, para onde ele era trazido num trem elétrico (!) vestindo seus piores farrapos, se é que os havia e, nesse ponto, como prova material de penúria para os pedestres, ele bem valia o seu peso em moedas. E se depois de um primeiro tratamento de choque, no referido INPS, ele fosse encaminhado a um profissional gabaritado, no ramo da mente, este talvez pudesse anotar em seu bloquinho, não como uma certeza - pois aprendera a desconfiar delas - mas como uma bela hipótese a ser investigada, o fato de ele ter escolhido (ou ter sido escolhido por ela, pouco importa, pois não existem coincidências, mas causalidades necessárias) uma profissão que o levaria sempre para bem próximo das marquises e que agora estivesse na iminência de jogar-se de uma delas para cair dentro do berço, que era a calçada. A fortificar tal dedução, havia o fato indiscutível de que ele trilhara literalmente esta via na vida, onde era sempre obrigado a pegar um trem elétrico para chegar ao local de trabalho que se confundia com o mítico ponto onde seria acalentado e daí, talvez, se pudesse explicar-lhe seu delírio ambulatório e até curá-lo dele, pois num dia chave, como o de hoje, o ter gasto o dinheiro da condução de volta com um café e principalmente açúcar (pois a doçura na boca era um fator que, além das calorias, tinha necessariamente de ser levado em consideração) podia não passar do que provavelmente era: um mero pretexto a acobertar coisas mais reconditamente recalcadas no inconsciente. E o final de todo este encadeamento era que ele gastara o dinheiro do ônibus, o veículo que o levaria de volta ao sofrimento do lar, e não o daquele trem (o seu trenzinho elétrico de infância) que o conduzia ao aconchego do seio materno. E o profissional sorriria de prazer diante de tal insight não do paciente, mas dele próprio - que poderia até ser levado a um congresso e publicado na revista da Sociedade, espicaçando os lacanianos, eis que tais associações não se teriam devido a nenhum troca-letras ou aliterações, mas a imagens semanticamente justas, verdadeiro embrião para uma monografia que poderia ser intitulada A psicanálise da classe operária e, desta vez, sem qualquer ironia, a Europa verdadeiramente se curvaria diante do Brasil. É certo que tal profissional, por sua integridade, somada a uma boa dose de esperteza, se anteciparia com um post-scriptum às possíveis desconfianças diante de tal modelo, criticando-o ele mesmo justamente por sua perfeição, como a de um círculo, não deixando brechas, mas redimindo-o com o argumento de que muito mais do que pela justeza científica de uma resposta, um modelo psicanalítico se validava pela maior ou menor possibilidade de um paciente ajustar-se dentro dele, como num pijama de molde adequado, e residiria aí, precisamente, a possibilidade de cura, se se pode falar em cura quando se trata de uma coisa volátil como a mente, que, como a alma, não ocupa propriamente um espaço. E, de qualquer modo, dentro das limitações de uma tentativa de conhecimento que não chega a ser uma ciência, mas um método, talvez propiciaria este modelo que o paciente pudesse voltar para casa, em vez de dissipar seu dinheiro na rua, e lá beijar a mulher no rosto como qualquer cidadão de classe média. Para então concluírem juntos, paciente e analista, que no princípio e fim de tudo está sempre o amor e, neste ponto, concordariam todos, freudianos, lacanianos e junguianos-bio-energéticos, que o que importava, no fundo, na relação analítica, era a cumplicidade afetiva, amorosa mesmo, entre analista e analisando, pena que tal tipo de cliente em potencial, este que estava suspenso por um fio entre vida e morte, na marquise, não pudesse pagar para ver isso de perto. Então só lhe restava o amor de fato. O amor de uma mulher, por exemplo, que lhe estendesse a mão neste momento crucial. Não a mulher dele, evidentemente, pois a relação que se estabelecera entre ambos nos últimos tempos, depois dos desgastes da vida em comum, era aquela que pode estabelecer-se entre um pedaço de pau e um buraco, mais ou menos ajustados em suas dimensões, porém dissociados de uma configuração gestaltiana que os integrasse dentro de um todo que incluiria um aspecto de sublimação espiritual, aquilo que os seres humanos costumam denominar amor. Ou mesmo um desejo intenso pela carne alheia que fosse mais do que o apaziguar de uma coceira. Mas a natureza não queria nem saber das condições extrabiológicas: no fim de nove meses dava filho e ele já tinha três. Boa parte daquela massa arfante que circulava pelas ruas lá embaixo era proveniente do encontro de corpos em tais circunstâncias de pobreza material e do espírito, então era natural que, em termos de qualidade, houvesse uma baixa progressiva. O amor que o poderia ter salvo seria, por exemplo, o de uma datilógrafa que às vezes ele via fazendo horas extras numa das firmas para as quais ele era designado para a limpeza. Era uma jovem bem proporcionalmente rechonchuda, que provavelmente se tornaria gorda, com o correr do tempo. Mas isso era um problema para depois, do qual ele não se ocupava em suas fantasias, pois estamos no terreno do presente imediatíssimo. Além de ele verdadeiramente admirar-se com suas formas e com o modo velocíssimo da moça bater à máquina sem olhar para as teclas, havia um detalhe que fornecia a ela uma aparência simultaneamente distinta e distante (porque ele conhecia bem o seu lugar no mundo): os óculos. Parecia-lhe incrível que uma mulher fosse ao mesmo tempo jovem e desejável e complementada por um par de óculos que fazia vir à mente dele professoras meigas que ele não tivera a oportunidade de conhecer. Eram os óculos um símbolo de inacessibilidade e cultura e as fantasias chegavam a ele primeiramente em forma de preliminares, como levá-la ao cinema, à Quinta da Boa Vista, até um dia pegar na mão dela, para só depois, muito aos poucos, ir pegando no resto. O momento em que ele a possuiria seria um acontecimento solene, quando deveria munir-se de toda a delicadeza e a última coisa a retirar do corpo dela, se ele efetivamente retirasse, seriam os óculos. Porque esses óculos, sem que ele o soubesse, eram o seu fetiche. Talvez ele se espantasse ao saber que também dentro dela se passavam devaneios, nos quais um homem sensível acabaria por descobrir a alma gentil que se abrigava naquele corpo curvado sobre a máquina e atrás daqueles óculos. Embora ela mantivesse relações esporádicas com um contador casado e com um jovem vizinho de bairro, que tinha um automóvel, ainda não se desfizera do seu sonho de casar-se com alguém que verdadeiramente precisasse dela, como algum jovem estudante de medicina que chegaria ao final do curso com todo o sacrifício, do qual ela compartilharia com alegre resignação. E se ela conhecesse um homem assim quando ele se encontrasse à beira do desespero, seria capaz de entregar-se ainda mais vitalmente, gozando entre lágrimas da comovente alegria que é poder estender a mão àquele que se afoga, para trazê-lo não só à tona, mas aos píncaros do sublime. O problema é que para se ter direito ao amor, no desespero, é preciso carregar algum tipo reconhecível de beleza, nem que seja através de obras, como um Toulouse-Lautrec. Embora Van Gogh, apesar de tudo. Quanto a ele, o homem na marquise, fora destinado a essa solidão radical que é a feiúra na pobreza. Mas ele seria até capaz de reconhecer, modestamente, se tivesse tido a tal educação mais aprimorada, que Toulouse-Lautrec sofrera mais do que ele, porque provara daquele mundo onde as mulheres eram belas, e os homens, artistas tão sequiosos dessa beleza, que às vezes um deles, por carência dela, se mandava daquele mundo para outro melhor. Então só lhe restava, de fato, o amor de Deus ou a Deus que, através de uma das suas personae cristãs, o Filho, podia ser visto concretamente de braços abertos dominando a cidade. Podia ser visto privilegiadamente dali de onde ele estava, o homem da marquise. Iluminava-se o Cristo durante as noites e apagava-se ao amanhecer; encobria-se de nuvens negras em dias de tormenta e era visto a brilhar novamente quando voltava a bonança. Mas nunca, desde a inauguração da estátua, em 1931 - incluindo a visita do Papa, em 1980 -, fora visto mexendo um só dos braços para apaziguar uma dessas tormentas, individuais ou coletivas, nem quando eram as águas das chuvas que, descendo do morro que sustentava a sua imagem, iam provocar a catástrofe lá embaixo, levando na enxurrada casas, animais e pessoas e induzindo estas pessoas a pensar em algum castigo que certamente teriam merecido. Não era então previsível que movesse o Cristo um dos dedos que fosse, pelo homem na marquise, ainda mais que, se se encontrava este em posição tão periclitante, era de posse de um livre-arbítrio muito mais acentuado do que normalmente dispunham as pessoas na sua posição, tomando-se esta no sentido mais amplo possível. Pois não só ele dominava as alturas, como fora parar ali por dever de ofício e não pelo desespero - a não ser o inerente ao próprio ofício - e podia descer no momento em que quisesse, inclusive pelo lado de dentro do prédio. E, se não o fazia, era pelo pecado do orgulho. Embora por várias vezes houvesse abandonado o Cristo por ídolos de periferia como orixás e exus, já ouvira falar, este homem, durante as catequeses de infância, em sua paróquia - depois das quais era servido um lanche-, que os pobres mereceriam um lugar de destaque no reino dos céus e que, por outro lado, os suicidas não teriam perdão. Para encontrar-se então com Deus, no seu caso particular, era preciso sobretudo ter paciência. E o que o homem fez foi abrir os braços para o Cristo, movido um pouco por uma súplica vaga, porque ele não sabia como sair honrosamente daquela armadilha, e um pouco por exibicionismo ou espírito de imitação, que não raro são a gênese da loucura, quando um ser humano percebe que, se não podem certas realidades ser transformadas, pode-se simplesmente mudar a si mesmo, trocando-se um papel modesto por outro melhor, como o de Napoleão ou outro general, em casos extremos, ou de um simples guarda de trânsito, nos menos graves. Imitação que, naquele caso específico, fez sucesso, pois a massa vibrou lá embaixo, talvez pela popularidade do modelo, talvez por acreditar que a personagem que o encarnava finalmente iria voar. Foi neste momento que se fez ouvir a voz. A voz trovejou não das alturas, mas da sala da firma de engenharia: - O senhor desça já daí porque está preso - disse um policial, empunhando seu revólver. Logo percebeu que incorrera numa impropriedade semântica que podia trazer graves conseqüências, se o homem descesse e, por isso, estendeu um dos braços dali do peitoril da janela para agarrá-lo. Pela primeira vez, na vida, este outro homem era tratado de senhor; tratamento, porém, que adivinhava seria imediatamente abandonado uma vez nos braços truculentos da Lei. Então recuou na marquise até um limite tão preciso e precário que, fatalmente, o colocava sob a jurisdição do corpo de bombeiros. O representante mais categorizado desta corporação, que ali estava, fora submetido a um treinamento durante o qual se levara em conta, entre outras disciplinas, as humanidades. Fez um sinal para que o membro da outra corporação se recolhesse a um canto discreto e assumiu o comando das operações com um discurso para o qual se preparara desde o dia em que, assistindo a um filme pela TV, descobrira que a sua verdadeira vocação era ser bombeiro. Um discurso onde o formalismo era substituído, juntamente com as armas, pelo tratamento mais brasileiro-homem-cordial do “você . - Rapaz - ele disse. - Pra tudo na vida há remédio e você ainda vai rir dos problemas que te levaram até aí em cima, seja lá o que for. Por que não chega mais perto pra gente conversar? Ou se quiser fala daí mesmo, que nós estamos aqui é pra te ajudar. Apesar das misturas de concordância e de uma certa armação na fala, sua voz alcançara justamente aquele tom de cumplicidade afetiva, amorosa mesmo, precioso para se estabelecer uma relação. E é preciso não esquecer que o homem não se instalara ali com a intenção de pular; apenas fora tentado, inadvertidamente, pela vertigem e poder das alturas. Virou-se então para o bombeiro, que já saltara para a marquise, sob aplausos do público volúvel, e sorriu encabuladamente, como que pedindo desculpas. Poderia ter explicado, simplesmente, que estava limpando vidraças e que tudo não passava de um mal-entendido, era só ver o balde etc., e checar na Panamericana - Serviços Gerais. Mas a verdade é que haviam ocorrido em sua mente alguns fenômenos bastante complexos, que modificaram a sua visão de mundo e que ele gostaria de expor, inclusive a si mesmo, mas para os quais não encontrava palavras. - É como se fosse um outro, compreende? - ele disse ao bombeiro, que o abraçava sem encontrar resistência, para conduzi-lo à sala. - Alguém possível dentro de mim, que estivesse soprando pensamentos na minha cabeça. Neste momento, ele deu um largo sorriso, porque essas eram justamente as tais palavras. Porém o treinamento do bombeiro não chegara a considerar certos aspectos mais recônditos, sutis e contraditórios da mente e, como um profissional objetivo dentro das limitações dos seus deveres, não teve dúvida em seu veredicto. - É louco - avisou lá para dentro, ao mesmo tempo que empurrava o homem para o interior da sala, onde foi imobilizado. Ele fora traído, mas, por outro lado, o seu salvador - se podia chamá-lo assim - aplicara-lhe um rótulo novo que lhe oferecia também uma nova identidade, talvez explicando suas novas sensações, que agora ele preferia guardar para si mesmo. “É como se tudo não passasse de um sonho, inclusive eu e o bombeiro.” Um sentimento, aliás, sumamente agradável, porque o libertava de certas cadeias. Ele estava enganado, mas não muito longe da verdade, embora o estivesse da originalidade: ele não era um sonho, mas uma alegoria social. Social, política, psicológica e o que mais se quiser. Aos que condenam tal procedimento metafórico, é preciso relembrar que a classe trabalhadora, principalmente o seu segmento a que chamam de lúmpen, ainda está longe do dia em que poderá falar, literariamente, com a própria voz. Então se pode escrever a respeito dela tanto isso quanto aquilo. Mas nesse ínterim chegava suado, gordo e ofegante ao recinto uma personagem bastante próxima da realidade: o chefe de pessoal da Panamericana - Serviços Gerais. Vinha imbuído de formalismo, dignidade e prerrogativas do seu cargo, além de premido pelo medo de perdê-lo, diante de uma publicidade que não era bem o que o departamento de Relações Públicas da firma tinha em mente. Com os pés bem fincados no chão, disse: - Você desonrou o uniforme. Pode trocar de roupa e me entregá-lo pessoalmente. O ato que acaba de cometer é falta grave, passível de justacausa. E portanto está demitido. Suas palavras judiciosas visavam, desta vez, muito mais do que impressionar estilisticamente a audiência, assegurar a todos que estava fazendo o melhor possível nas circunstâncias, uma vez que o seu olhar clínico para bêbados, vagabundos, ladrões e malucos falhara lamentavelmente naquele caso. Inadvertidamente, estava cometendo mais um erro: suas palavras foram registradas pela imprensa, um tanto frustrada até então com a negativa do homem da marquise em dar qualquer depoimento em que as suas motivações se mostrassem claras. E louco era uma palavra que os editores, a não ser os dos jornais populares, consideravam um tanto vaga. E o executivo não apareceu bem na história, onde, ao contrário do que pensava, também não era sujeito, mas uma reles peça, primeiro passo numa derrocada que se iniciaria com a sua demissão e terminaria com o seu suicídio, quando, por um sentimento inato de justiça, viesse a aplicar em si próprio o mesmo código severo que costumava destinar aos subordinados. Mas isso já é outra história. Nesta, apenas os policiais ficaram impressionados. Embora também não encontrassem as palavras justas para dizê-lo, viram ali uma manifestação do poder temporal e também daquele outro, maior, que fora ofendido numa de suas principais personae. E, como punição exemplar aos desesperados, mais desespero. O veterano de tantos incêndios e escombros de enchentes -, e disse que o rapaz só ia trocar de roupa no hospital psiquiátrico, para onde seria levado. Suas palavras também foram registradas e, mais uma vez, com toda a justiça, a corporação apareceu bem diante da opinião pública, como um lampejo de esperança de que nem tudo estaria perdido. Quanto à personagem principal da história, o homem da marquise, ao saber do seu destino, em outras circunstâncias talvez se sentisse ferido em seu ponto mais vulnerável, o que o teria feito, quem sabe, aproveitando a vigilância afrouxada, pular enfim para a morte. Não por causa da perda do salário, propriamente, pois já se encontrava há muito a um pequeno passo do vazio econômico absoluto. Mas porque perceberia, com clareza, que a Panamericana tinha sido até então para ele não apenas um emprego, uma firma na qual trabalhava, mas um invólucro, materializado pelo uniforme, dentro do qual se enfiava - ele que se sentira, desde o berço, como uma espécie de coisa oca - e que, se não lhe fornecia uma identidade marcante, o tornava parte de uma equipe, como no futebol, permitindo que - contrariando o regulamento - passeasse entre os mendigos do Aterro sem sentir-se um deles, ainda que também não tivesse nem um puto no bolso. O sujeito do corpo de bombeiros - que indiscutivelmente surgia diante dos seus olhos como a pessoa de maior autoridade moral, dentre todos, ali - falara numa troca de uniformes no hospital psiquiátrico, do mesmo modo que fizera, a propósito dele, sem titubear, um diagnóstico preciso: louco. Não havia então por que desconfiar e ele caminhava com uma satisfação até ansiosa para trocar de papel e de equipe. Na verdade, ele já se encontrava sob outra jurisdição. Não a dos dois homens de branco que chegaram para levá-lo numa ambulância, ele envergando o uniforme da Panamericana e tudo. A jurisdição sob a qual ele se encontrava era a do “outro”, aquele alguém possível que soprara pensamentos em sua cabeça, sobre a marquise. E ele previa, intuitivamente, que lá no hospital deveria haver um pátio onde, flanando à vontade debaixo das árvores ou sentado num banco, ele teria todo o tempo do mundo para encontrar e conhecer o tal “outro”, até que os dois se tornassem a mesma pessoa e falassem com a mesma voz. Sérgio Sant'Anna

Relato Hodierno

No seio das praças, ao redor do centro um grupo de corpos se abriga. Mulheres, crianças, homens e idosos. A temperatura do corpo, em contato com o solo tarda para que se estabilize. Um choro distante, agudo é irrompido por surdos estalos, vozes abafadas elementos que compõe a polifônica sinfonia urbana. É o choro de uma criança com fome. É apenas mais uma noite no centro de BH. Assaltante noturno de madrugadas infernais o sono finalmente invade os corpos encolhidos é como uma resposta da lua ao coração endurecido: após horas de luta o ser se entrega aflito ao natural e infantil procedimento milenar -quem sabe aí, precisamente aí- um instante de felicidade finalmente o invada... Mas ao acordar, a cidade já vive. E não haveria de o ver, não fossem seus restos confundidos com lixo, acidentalmente apanhados pelos funcionários da prefeitura. - Senhor, nos dá licença? Precisamos limpar. A quantidade absurda de impostos recolhidos de um povo munido de desesperança serviria para algo, afinal? O homem levanta-se, cambaleante, mal dormido. Sabe-se que não se pode dormir ali. - Perdão, ele diz...mas essa sacola é minh.. Tudo aquilo que tinha, cabia numa sacola plástica. antes que pudesse terminar sua sentença sua vida é arremessada para dentro do caminhão de lixo. - Ei! Ei! Esperem! Voltem aqui! Acima dele, acima dos funcionários, havia uma ordem. O tempo, o trajeto, tudo fazia parte dos cálculos que organizavam a logística de tráfego da cidade. Mal podiam ouvir o homem atrás deles clamando pelos seus pertences. Ele correu. Correu muito, correu atrás do caminhão e todos naquela praça o notaram. E no desespero de seu movimento não viu quando uma mulher atravessou sua frente. Um esbarrão fora suficiente para que aquele corpo passasse a ser uma ameaça à segurança pública. A tragédia chocou as autoridades que logo se dispuseram a verificar o atentado. A bolsa da Armani derrubada em plena praça pública. O homem foi parado, detido, preso e algemado. É apenas mais um dia no centro de BH.

que seria do poeta?

o poeta que seria do poeta este pequeno poeta sem teus versos de inquietude compondo em sons o vazio primordial aquele que existe quando a noite cai e o dia é frio e as horas longas... que sentido teria a vida do poeta se o canto adormecido dos pássaros fosse somente a frequencia emitida por minúsculas cordas vocais e nada disso resultasse em um arrepio profundo e nada disso mergulhasse o dia num torpor de sentimentos nostálgicos que seria do poeta sem o amor que dá sentido ao ato involuntário da existencia essa dádiva divina tão pouco reconhecida cujo hábito acaba por fazer-nos esquecer... que seria do poeta se não houvesse a saudade essa amiga nas horas escuras do dia motivação primordial do primeiro gole ou da primeira linha na página em branco... que seria do poeta sem a palavra? borboletas do pensar, aniquiladoras do real trabalharias automaticamente e do céu rosa não se pensaria numa música, na amada pensarias somente na consumação ardente do desejo e desse desejo, nada mais nenhuma poesia seria feita nenhum hino evocado as cigarras cantariam sozinhas o mundo estaria enfim desencantado...

sábado, 23 de maio de 2020

Brasil e Moçambique são países que mantém uma boa relação diplomática e talvez por isso não tenha sido difícil encontrar aceitação por parte do povo moçambicano em seus círculos sociais. Inclusive no comércio, o fato de ser Brasileiro, era uma vantagem, pois eles admiram muito a nossa cultura, principalmente a música. Além disso, são extremamente receptivos e possuem ainda uma dimensão axiológica dita tradicional, que os levam a cultuar valores como a amizade, a solidariedade e a união. Valores que, no Brasil e nos países mais desenvolvidos, sobretudo após a modernidade e a consequente globalização, enfraqueceram a ponto de quase não existirem mais. Neste sentido notei que somos muito mais egoístas, estressados e infelizes que a maioria do povo Moçambicano, pois vivemos sob uma lógica já há muito tempo enraizada de produção e consumo que nos leva a uma crise de valores pessoais que destroem nossas relações sociais e familiares. Nos tempos modernos, onde tudo é liquido, segundo Bauman, as relações também se tornam liquidas, “escorrem pelos vãos dos dedos”, e o homem, na ausência de certezas, na busca por sentido, agarra-se ao concreto, àquilo que a sociedade lhe vende como sendo o remédio para suas angústias. Agarra-se, assim, ao consumo e ao prazer do imediato, externos a ele, esquecendo-se de buscar a verdadeira felicidade, em seu interior.
Pelo reencatamento do mundo: suspendo a covardia aceito a valentia em amar e ser amado

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

ESTRATÉGIAS MODERNAS PARA SE APRENDER A AMAR

Alterei a cor de nossas conversas no Facebook 
- a fim de te esquecer -
coloquei o amarelo vivo, cor da liberdade
- como desejo te ter -
então, nos pequenos movimentos,
aprender, pouco a pouco,
a viver com você.

PERCEPÇÕES DE MUNDO

Ao meu lado, neste instante, há uma borboleta
assim pousada, sob a superfície lisa da parede amarelada
ela me parece tão só.
No entanto que sei sobre ela?
Sei que é uma borboleta, e que durará pouco.
mas não saberia explicar o que sinto quando a vejo.
Sei que a solidão da borboleta não é dela.
Sei também que tampouco é minha.
É triste explicar uma borboleta.
É como explicar uma fragrância.
Pode-se consultar o dicionário, realizar dissecações
mas ninguém sabe explicar o que é de fato uma borboleta.
Será este o ofício do poeta?

ODE ÀS PEQUENAS COISAS

Serão erguidos versos daquilo que é incomunicável:
a luz do sol refletindo na janela do teu quarto
o desenho das tuas curvas de ouro
o aroma preto pela manhã
e você me acordando: "queres café?"
o barulho do ventilador
o andar cauteloso
o piso com suas imperfeições
o teto, que faz chover pó
e voce dizendo: "me ajuda a limpar?"
o cuidado em manter a porta fechada
a chuva, e o cheiro de terra molhada,
as vestimentas que desaparecem misteriosamente
e o encontro, no centro do pátio ou numa casinha de cachorro,
das roupas rasgadas; os focinhos escondidos
e voce indagando alto: "quem foi!?"
a Rata omissa
a Puma dissimulada
a Maria carente
o Bryan acrobata
eu entrando distraído
o Django aproveitando a deixa
e voce proferindo tarde: "cuidado com os cach..."
o portão que corre pesado
a chave, o esquecimento, os pulos secretos
tua mãe te gritando através da quadra
o pôr-do-sol de cima do telhado
o fim de tarde no inverno gélido
a mescla de cores, a aurora,
e voce me perguntando: "fecha um pra nós?"
a insistência em dormir sempre do mesmo lado da cama
a permanente tarefa de procurar o controle da TV
a fome no meio da madrugada
a preocupação
o cuidado
a simples companhia.

TRADUZIR-SE

Uma parte de mim é todo mundo; outra parte é ninguém: fundo sem fundo.
Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera; outra parte delira.
Uma parte de mim almoça e janta; outra parte se espanta.
Uma parte de mim é permanente; outra parte se sabe de repente.
Uma parte de mim é só vertigem; outra parte, linguagem.
Traduzir-se uma parte na outra parte — que é uma questão de vida ou morte — será arte?

(Ferreira Gullar, Na Vertigem do Dia. 1980.)

domingo, 26 de janeiro de 2020

Não posso dizer precisamente quando tudo começou, sobretudo por que quando nos encontramos nesses estados emocionais tumultuosos é difícil lembrar-se de tudo com clareza. Posso dizer que de alguma forma esse ano de 2020 despertou em mim o senso da passagem do tempo, exato quase oito anos em que saí de casa, exato quase oito anos em que fui privado de alguma forma de compartilhar o crescimento de meu pequeno irmão, Matheus, cujas feições e características mudam tanto a cada ano...Quanto tempo demorará até que não mais me abraçe, ou não mais se quer me chame de irmão? Oito anos em que a passagem do tempo (parece) não me somaram nada, neste momento, da forma como me sinto, oito anos perdidos. Mas, olhando pra trás, nesses oito anos, tanta coisa aconteceu. Tantas pessoas, tantas experiencias, tantos momentos mágicos e difíceis, mas no entanto necessários, me forjaram e me tornaram o que sou? É preciso agradecer, sim, pois somos livres. Livres para errar e acertar nesse mundo fantasioso a que chamamos realidade. Livres para sofrer e parar nos comprazer nos diversos momentos de nossa existência. Livres, enfim, para sermos aquilo que quisermos, por mais absurdo que isso soe.

 Posso dizer que os ultimos dias que sucederam minha partida foram de uma dureza, de um certo tipo de amargura ímpar, nunca antes sentida por mim naquelas circunstancias e com tamanha intensidade. Eu me comovia diante dos cômodos e de suas lembranças, dos objetos e dos sentimentos que os acompanhavam, e me via revestido emocionalmente de um mundo que eu sentia ser mais meu do que qualquer outro. A obrigação nunca antes exigida de zelar por aqueles que amo fora internalizada e no âmago do meu ser eu sabia o que devia ser feito.