quarta-feira, 10 de junho de 2020
Relato Hodierno
No seio das praças, ao redor do centro
um grupo de corpos se abriga.
Mulheres, crianças, homens e idosos.
A temperatura do corpo, em contato com o solo
tarda para que se estabilize.
Um choro distante, agudo
é irrompido por surdos estalos, vozes abafadas
elementos que compõe a polifônica sinfonia urbana.
É o choro de uma criança com fome.
É apenas mais uma noite no centro de BH.
Assaltante noturno de madrugadas infernais
o sono finalmente invade os corpos encolhidos
é como uma resposta da lua ao coração endurecido:
após horas de luta o ser se entrega aflito
ao natural e infantil procedimento milenar
-quem sabe aí, precisamente aí-
um instante de felicidade finalmente o invada...
Mas ao acordar, a cidade já vive.
E não haveria de o ver, não fossem seus restos
confundidos com lixo, acidentalmente apanhados pelos funcionários da prefeitura.
- Senhor, nos dá licença? Precisamos limpar.
A quantidade absurda de impostos recolhidos
de um povo munido de desesperança
serviria para algo, afinal?
O homem levanta-se, cambaleante, mal dormido.
Sabe-se que não se pode dormir ali.
- Perdão, ele diz...mas essa sacola é minh..
Tudo aquilo que tinha, cabia numa sacola plástica.
antes que pudesse terminar sua sentença sua vida é arremessada para dentro do caminhão de lixo.
- Ei! Ei! Esperem! Voltem aqui!
Acima dele, acima dos funcionários, havia uma ordem.
O tempo, o trajeto, tudo fazia parte dos cálculos que organizavam a logística de tráfego da cidade.
Mal podiam ouvir o homem atrás deles clamando pelos seus pertences.
Ele correu.
Correu muito, correu atrás do caminhão e todos naquela praça o notaram.
E no desespero de seu movimento não viu quando uma mulher atravessou sua frente.
Um esbarrão fora suficiente para que aquele corpo passasse a ser uma ameaça à segurança pública.
A tragédia chocou as autoridades que logo se dispuseram a verificar o atentado.
A bolsa da Armani derrubada em plena praça pública.
O homem foi parado, detido, preso e algemado.
É apenas mais um dia no centro de BH.
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