quarta-feira, 10 de junho de 2020

Flutuar acima da superfície

Assisto diariamente pessoas passando por pessoas, tratando-as como coisa qualquer. A lua se apresenta acima de nós e abaixo dela estamos vidrados em nossos celulares, fones no ouvido para não ouvir o ritmo urbano, escondidos do mundo em nossas fortalezas de concreto, enaltecendo os ideais da Revolução Francesa pelo Facebook. Ao sairmos de casa nos preocupamos se temos dinheiro suficiente para a cerveja, se conseguiremos saciar nosso apetite sexual, se fumaremos aquele baseado ou se encontraremos aquela pessoa que ficamos semana passada e não gostaríamos nem um pouco de vê-la por hoje. Quando vou a grande centros urbanos nada me deixa mais vazio que notar que ninguém ali se importa com meu nome, minha história, meu passado. Que não há o por quê deles se importarem com isto. Que jamais será importante para eles importarem-se com isso. E que há tantos ali que já perderam a esperança no homem, que sobrevivem à sombra dos restos, dormindo dentro das lixeiras para não morrer de frio e sobre as calçadas para não morrer da vida. Mas um dia ouvi dizer que era libertador não ser notado. E lembrei desses aí que fazem da rua sua morada. É libertador sim não ser notado quando não se quer ser notado, quando estar só faz parte dos planos, e é preciso saber marcar com precisão quem se liberta do quê, ou se a liberdade consiste em não ser notado, ainda que regido pelas mais diversas forças coercitivas, pois, se assim o for, em certo sentido, somos todos livres; mas ser notado e ser julgado são coisas distintas, e não implicam, como parecem, uma na outra. Sendo assim não me parece portanto que há liberdade onde não se é notado. O que há, entretanto, é descaso, insensibilidade para com o outro. Talvez no começo seja interessante, quando a força do hábito ainda não imprimiu em nós suas marcas, mas e depois, dia-após-dia, nessa profusão de ruídos e pessoas, agindo como máquinas, como formigas num grande formigueiro, correndo incessantemente atrás de seus sonhos, deixando pra trás vidas que poderiam ser suas, sonhos e projetos que permaneceram estendidos no varal da vida, todas elas certas, boas ou más, todas elas vítimas! Somos julgados o tempo todo e a aparente desatenção nos olhos do outro não é indício de caráter; pelo contrário, é um sintoma de declínio.

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