quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Especulações em torno da palavra 'Amar'

Há noites em que me demoro a dormir. Atravesso-as em claro, guiado pelo fio etéreo que se alastra em meu labirinto. Perdido, vou procurando migalhas, sequioso pela rota que me leve ao ponto de partida, onde tudo era fogo, onde tudo jaz, livre, atemporal.

Amar...que significa amar? Não sei. Mas sei que, de alguma forma, amo. E quando amo...Amo? E, se não amo, que faço, quando penso que amo? Insisto no erro, insisto no engano? Ou...simplesmente amo, não como deveria, mas como posso? Amo da forma que me cabe neste momento. Mas é amor isso a que chamo? Amo do jeito que aprendi a amar. Amo certo? Amo errado? Não sei...não sei...

Afinal, qual seria o oposto do amor, se não o medo? Amar exige coragem. Coragem de irmos além. Além de nós mesmos, dos limites que nos cerceiam, aprisionam e diminuem nosso amor. O medo, por outro lado, é nosso grande inimigo. Em qualquer aspecto de nossa vida, ele será nosso maior inimigo e, no entanto, um grande aliado. Curioso é notar que tal como a luz não existe sem a sombra, o calor não existe sem o frio, o amor não existe sem o medo. E assim pendemos, entre duas margens, entre os opostos que se complementam, malabaristas manejando intentos - corações apaixonados que se encontram sob o manto do que se acaba a todo instante. Amar é experenciar verdadeiramente a finitude.

Antes de perguntar se amamos o outro, cabe a pergunta: será que amamos a nós mesmos? É possível amar o outro, quando na ausência de si? E quando não nos amamos - existe o outro? 

O amor é livre - tudo que aprisiona, distoa. Amar não é possuir. Esperar que o sol nasca sempre o mesmo é desconhecer a natureza do Sol. Esperar que os eventos se desenrolem de determinada forma é uma recusa em aceitar as leis que regem a própria natureza. Casualidade. Imprevisibilidade. Acidentes.

 Um objeto de desejo, ele mesmo, deseja? Não. Ele cumpre uma função, desempenha um papel. Qual é o papel do amor, se não o de ser ele mesmo uma ponte que une, que cria, que possibilita? A partir do momento em que amamos o que idealizamos no outro, nós tornamos ele nosso objeto de desejo. Não amamos o outro por quem ele é. Pensamos que amamos, mas em verdade estamos aficcionados pela ideia. Estamos flertando com sombras, apaixonados por projeções.

Amar é entrega ilimitada e desinteressada. É adoração silenciosa. É presença invisível. Água que brota da fonte. Pura. Sagrada.

Dói tanto estar perto. E, ainda assim, dói menos que estar longe. Seria amar uma dor? Um sofrer alegre, uma dor que edifica, que ensina? Qual dor não ensina? O que, afinal, não é amor? Sofremos na indefinição do amor. Sofremos na incerteza, na tempestade, na dúvida. Sofremos no medo, no abismo das certezas. Sofremos por que caminhamos sobre estradas que se apagam, porque construímos fortalezas inúteis, castelos de areia à beira do mar. Sofremos porque cristalizamos, porque estamos cansados, porque temos medo. Enfim, sofremos por que não aprendemos ainda a amar.

A união. O paradoxo que existe quando duas almas se propõem a florescer sob companhia uma da outra: tornar-se um, mantendo-se dois. Amar é uma casa-comum. Deve ser construída lentamente, sem pressa. Não existe, portanto, urgência no amor. Ele é paciente - e deve ser, pois é sempre uma tarefa mútua, de tempo compartilhado. E é absolutamente preciso que primeiro venham os alicerces, depois as vigas, em seguida as paredes, o telhado. Por fim, o jardim, que floresce e se torna abundante, se bem cuidado. Desabrochar é um processo lento. Florescer demanda tempo, esforço, energia.

No entanto, apesar disso, sei que é o amor? Não sei. Entre o pensar e o sentir existe um abismo. Sei que te desejo - e isto me basta.

Ora, não acredito em destino. Acredito em escolhas.

Talvez seja esta a tarefa mais grandiosa a que nos propomos quando deixamos migramos para maioridade. Tornar o amor um verbo ativo, dinâmico, presente. Tornar o amor uma casa - abrigar-se nele.

Te escrevo esse texto na esperança de que você não o leia. Sim. Como se ao declará-lo para o vazio ele me olhasse de volta, e em seu amplexo despretensioso, aprender, pouco-a-pouco, o significado da palavra amor. Na sombra da noite, sob a luz da lua, planto sementes em nosso jardim.

Essa é a forma que encontro para, enfim, assumir que não sei de nada. Que se escrevo, escrevo sob a areia fina. Escrever sobre o amor me ensina que escrever é também um ato de amar, embora eu não saiba defini-lo.

A cada linha, transbordo. Um pedaço de mim se desprende, se eterniza.

Tudo, absolutamente tudo, é passagem. Tudo se esvai na mão do tempo. Tudo se encerra, perpetuamente.

Somos rios à beira de nos tornarmos a qualquer instante oceano. Areias nesse imenso deserto, cujas dunas são sempre outras. E qual a nossa tarefa, senão a de amar, incondicionalmente?

Por isso escrevo - pois escrever é amar e amar é absolutamente tudo que me resta.






segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Homem: Um ser para a morte

 De acordo com Heidegger, o caminho que leva ao ser passa pelo homem, na medida em que ele está sozinho para interrogar-se sobre si mesmo, colocar-se em questão e refletir sobre o seu próprio ser. Concebida como via de acesso para a descoberta do ser, a análise da existência humana constitui o conteúdo da primeira parte de Ser e Tempo. Nesta obra, Heidegger aponta para três aspectos fundamentais da vida cotidiana do homem, cuja existência seria, para o autor, inautêntica: a facticidade, a existencialidade e a ruína.


Cabe a nós falarmos sobre a ideia de ruína. O que Heidegger compreende por ruína seria o desvio de cada indivíduo de seu projeto essencial, em favor das preocupações cotidianas, que o distraem e o perturbam, confundindo-o com a massa coletiva. O ser humano, em sua vida cotidiana, seria promiscuamente público e reduziria sua vida à vida com os outros e para os outros, alienando-se totalmente da principal tarefa que seria o tornar-se si mesmo.

Ora, mas como, enfim, tornamo-nos aquilo que somos? A fim de encaminhar-se na direção do ser seria necessário desvendar a existência autêntica do homem, aquela que o faz o verdadeira revelador do ser.

A angústia - segundo Heidegger - é, dentre todos os sentimentos e modos da existência humana, aquele que pode reconduzir o homem ao encontro de sua totalidade com o ser e juntar os pedaços a que é reduzido pela imersão na monotonia e na indeferenciação da vida contidiana. Para Heidegger, o angustiado não somente ignora a razão de seu estado de consciencia como também tem certeza que coisa alguma no mundo está implicada nesse estado. Isso se comprovaria pelo fato de que, na angústia, todas as coisas do mundo aparecem bruscamente como desprovidas de qualquer importância, tornam-se desprezíveis e dissolvem-se em nulidade absoluta. O próprio angustiado desapareceria de cena, na medida em que seu eu habitual, composto pelas preocupações, desejo e ambições cotidianas e vulgares, passa a ser considerado como insignificante. A própria dissolução do eu nas coisas do mundo e nas trivialidades impede-o de localizar a causa de sua angústia. O que ameaça o angustiado - diz Heidegger - está em tudo e em lugar algum, ao mesmo tempo. Não se pode dizer que a angústia se aproxima ou se distancia; ela é onipresente. Por isso, envolve o homem com um sentimento de estranheza radical. Todos os socorros e todas a proteções são ineficazes para debelá-la; o homem sente completamente perdido e desvalido.

A partir desse estado de angústia, abre-se para o homem, segundo Heidegger, uma alternativa: fugir de novo para o esquecimento de sua dimensão mais profunda, isto é, o ser, e retornar ao cotidiano; ou superar a própria angústia, manifestando seu poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo. Aqui surge um dos temas-chave de Heidegger: o homem pode transcender, o que significa dizer que o homem está capacitado a atribuir um sentido ao ser. O homem está naturalmente fora de si mesmo, sobre o mundo, em relação direta com o mundo que ele produz e para o qual ele se projeta incessantemente: "Produzir diante de si mesmo o mundo é para o homem projetar originariamente suas próprias possiblidades."

Entretanto, nesse projetar-se sobre o mundo, o homem não estaria sozinho. Ele é um ser-com, um ser-em-comum e isso se manifesta sobretudo no trabalho, mas ainda mais profundamente na solicitude por outrem, fato que conduz ao amor e à comunicação direta. É principalmente em relação a si mesmo e a seu próprio futuro que o homem não cessa de transcender-se. O ser humano jamais seria um ser acabado e nunca seria tudo aquilo que pode ser; estaria sempre diante de uma série infinita de possibilidades, sobre as quais se projeta. Estabelecendo um estado de permanente tensão entre aquilo que o homem é e aquilo que virá a ser, essa projeção constituiria a inquietação. A inquietação estrutura o ser do homem dentro da temporalidade, prendendo-o ao passado, mas, ao mesmo tempo, lançando-o para o futuro. Assumindo seu passado e, ao mesmo tempo, seu projeto de ser, o homem afirma sua presença no mundo. Ultrapassa então o estágio da angústia e toma o destino nas próprias mãos.

A temporalidade constitui, assim, a dimensão fundamental da existência humana, segundo Heidegger. E o filósofo conclui a segunda seção da primeira parte de Ser e Tempo com a pergunta: haverá algum caminho que possa levar do tempo existencial ao sentido do ser? Em outros termos, o tempo se revelaria também como o horizonte do ser?

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

 Pele que habito.
Lugar que me demoro.
Força que me invade,
Nesse ritmo sonoro.

O mar em que existo,
E o fogo que me arde - 
Ante a busca da Verdade - 
Fato ou interepretação?

Será sempre (mas não somente) 
pensamento
ideia criada por dentro
nas terras da imaginação?

sábado, 13 de maio de 2023

tornar o amor uma casa

erguê-lo como se ergue um lugar, abrigar-se nele

entrar dentro do amor

refugiar-se em suas trincheiras como

os que vêm feridos de morte

os que de súbito entendem que viver é breve ─

mas amar é longo

torná-lo tua mão que alcança a minha

a volta a um primeiro ato

de misericórdia

o sangue marcando as ombreiras de nossas portas

tornar o amor um esconderijo de infância

uma fresta na madeira

uma luz tênue

uma ave

tornar o amor uma casa; torná-lo

uma asa

---

mar becker

em: um dos poemas da seção final de "sal", 2021/22

Depressão

Esse excesso de sentir

me consome

eu não me pertenço mais


no escuro do mundo

minha voz se esconde

um grito abafado

atravessa a noite

no espelho um vulto -

irreconhecível

uma identidade -

fragmentada

onde será que errei

se é que errei

e quando errei?

foi por amar demais

as coisas pérfidas

ou por não saber amar

as coisas simples?

foi por excesso de sentir

ou por excesso de pensar?

estou em busca de mim

nas portas do universo...
.

Eu

Eu não me pertenço mais.

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Tempo e Memória

 Ontem mesmo passava pela rua em que cresci, e notava saudoso todas as transformações que ela sofrera ao longo desses vinte anos. Outros muros, cores diversas, as fachadas reformadas, novos ladrilhos, portões e calçadas; reconhecia todas as casas, e juro que podia dizer com precisão quais foram as mudanças pelas quais cada uma passou. Nossa memória é nosso refúgio.

Gozado é notar que meu espírito avaliava tudo aquilo com certa resistência - havia qualquer coisa de intimidador com toda aquela transformação. Como se a mudança material das edificações simbolizasse a impermanência e transitoriedade da própria existência - e junto a ela, uma espécie de reflexão jazia. Afinal, o que fiz durante todos esses anos?

Como se, estando eu lá atrás, na imagem que tinha da rua onde cresci, estaria resguardado das dores emaranhadas na imagem do agora.

Como se ao permanecer inalterada a fisicalidade de certo espaço nos sentíssemos mais próximos a quem éramos quando o frequentávamos...

Ah! Mas que loucura é se abrigar em memórias e desejar que na vida tudo permaneça o mesmo - se a todo segundo tudo é novo, tudo se altera, tudo se transforma...

Seria a negação da mudança, seja qual for, o grande dilema de nossas vidas?

Aceitar a morte como quem aceita a chuva - e fazer das lágrimas uma espécie de oração.


sábado, 21 de janeiro de 2023

 O aroma do vento é como uma lembrança

de liberdade.
E no germe de toda vida múltipla
reside o meu apelo a vida.
sonho baixo para que os pássaros não invejem
a altura de meus devaneios
e perto da terra, ao lado do lodo,
edifico minha casa
compreendo meu lugar ao lado das coisas mortas
como sendo eu mesmo matéria semelhante
ao lado da sepultura florida de meus antepassados
derramo água que verte do sangue
como uma oferenda muda aos mortos que tanto falam
O caminho da matéria morta é um enigma de luz
da esfinge até a banalidade do meu entorno:
em tudo quanto existe parece que Deus respira
como origem, fonte, seio e fim.
ser ou não ser? eis a questão que norteia
o vôo de minha poesia...
nas ilustrações da natureza inanimada
é a pedra quem recebe as inscrições naturais
o poeta, o mais antigo dos paleólogos
escava o terreno da imaginação ativa
pedra, terra, lodo, árvore, homem
derivativos de uma única substância
quem já teve a sensação de se sentir em casa em meio a Natureza?
nas lendas, nos mitos, os elementos nos falam
sobre resquícios de uma psicologia humana
e as vozes, que ecoam da terra
nos alcançam através dos sonhos.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Seria a depressão uma nova luz no horizonte?

Morrer não é um problema. A morte física é o encerramento de um ciclo biológico. Qual seja o nosso destino, a consciência, a que tudo indica, adormece, se transmuta, não mais é. Morrer verdadeiramente implica a renúncia de nossos sonhos, nossas aspirações, nossos objetivos. Em outras palavras, morrer verdadeiramente significa esperar passivamente pela morte física. Quantos de nós não estamos mortos, ainda que respirando?

Ouso dizer que não existe dor maior que viver uma vida nula. Uma vida desprovida de sentido. Nesse estado, a razão se volta contra o homem como uma arma letal. Ela impulsiona os pensamentos doentis, lhes confere força, legitimidade. Não devemos legitimar aquilo que pensamos quando estamos distantes de nós mesmos. Se não disciplinarmos nossa mente e corpo para lidar com as tempestades da vida, o sofrimento é eterno - continuaremos a velejar num mar revolto, esperançosos de que, eventualmente, o barco afunde de vez.

Sente-se, não sem frequência, o desejo de que ele toque o fundo do vasto oceano. Como se alcançar o abismo fosse uma manobra desesperada por uma profundidade esquecida. Que o barco seja levado pela tempestade, e com ele, tudo o mais – o mar, a embarcação, os tripulantes. Dormir e não mais acordar – um sono sem sonhos...seria esse o quadro a que chamamos ‘morte’?

Para atribuir um sentido profundo à nossa existência é preciso que resgatemos a criança que habita em nós. Porque quando crianças a nossa mente ainda não se identificou com nenhum aspecto de nós mesmos – somos livre para sermos o que quisermos. A imaginação, o descaso com a opinião alheia, a liberdade de criação de novos horizontes possíveis...tudo isso é sublimado pelas exigências de uma vida cotidiana.

Todavia, na medida em que envelhecemos, esquecemos. Parece mesmo que temos que ‘ser’ uma ‘coisa só’ – atribuir a nós um título, uma profissão, um meio de ‘ganhar a vida’. A identificação com esses títulos muitas vezes se traduz num esquecimento, socialmente administrado, de nossas diferentes habilidades. A memória parece, portanto, ter um papel fundamental na construção de nossa felicidade. Tanto é assim que um dos sintomas mais comuns àqueles que sofrem de depressão é o esquecimento gradativo de suas próprias potencialidades emergentes. Esquecer a si é consequência direta de um olhar desesperançoso. Esquecer a si mesmo é a verdadeira morte do homem - que absolutamente nada é em si, além daquilo que faz de si.


A ideia de ‘conquistar nosso espaço’ implica que devemos antes nos firmar social e individualmente como ‘x’ e exercer a função ‘x’. Somente então teremos ‘conquistado’ o nosso lugar. Porque é uma competição, a existência em meio aos demais supõe competir com os demais. Em outras palavras, existir em sociedade implica estabelecer uma relação de poder marcada pela suposta ‘superioridade’ de capacidade de uns em relação aos outros. Apenas por meio do trabalho pode o homem sentir-se útil. Sentir-se útil – ou inútil – eis o início da ascensão e declínio do homem e da sua capacidade de sonhar.