terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

ESTRATÉGIAS MODERNAS PARA SE APRENDER A AMAR

Alterei a cor de nossas conversas no Facebook 
- a fim de te esquecer -
coloquei o amarelo vivo, cor da liberdade
- como desejo te ter -
então, nos pequenos movimentos,
aprender, pouco a pouco,
a viver com você.

PERCEPÇÕES DE MUNDO

Ao meu lado, neste instante, há uma borboleta
assim pousada, sob a superfície lisa da parede amarelada
ela me parece tão só.
No entanto que sei sobre ela?
Sei que é uma borboleta, e que durará pouco.
mas não saberia explicar o que sinto quando a vejo.
Sei que a solidão da borboleta não é dela.
Sei também que tampouco é minha.
É triste explicar uma borboleta.
É como explicar uma fragrância.
Pode-se consultar o dicionário, realizar dissecações
mas ninguém sabe explicar o que é de fato uma borboleta.
Será este o ofício do poeta?

ODE ÀS PEQUENAS COISAS

Serão erguidos versos daquilo que é incomunicável:
a luz do sol refletindo na janela do teu quarto
o desenho das tuas curvas de ouro
o aroma preto pela manhã
e você me acordando: "queres café?"
o barulho do ventilador
o andar cauteloso
o piso com suas imperfeições
o teto, que faz chover pó
e voce dizendo: "me ajuda a limpar?"
o cuidado em manter a porta fechada
a chuva, e o cheiro de terra molhada,
as vestimentas que desaparecem misteriosamente
e o encontro, no centro do pátio ou numa casinha de cachorro,
das roupas rasgadas; os focinhos escondidos
e voce indagando alto: "quem foi!?"
a Rata omissa
a Puma dissimulada
a Maria carente
o Bryan acrobata
eu entrando distraído
o Django aproveitando a deixa
e voce proferindo tarde: "cuidado com os cach..."
o portão que corre pesado
a chave, o esquecimento, os pulos secretos
tua mãe te gritando através da quadra
o pôr-do-sol de cima do telhado
o fim de tarde no inverno gélido
a mescla de cores, a aurora,
e voce me perguntando: "fecha um pra nós?"
a insistência em dormir sempre do mesmo lado da cama
a permanente tarefa de procurar o controle da TV
a fome no meio da madrugada
a preocupação
o cuidado
a simples companhia.

TRADUZIR-SE

Uma parte de mim é todo mundo; outra parte é ninguém: fundo sem fundo.
Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera; outra parte delira.
Uma parte de mim almoça e janta; outra parte se espanta.
Uma parte de mim é permanente; outra parte se sabe de repente.
Uma parte de mim é só vertigem; outra parte, linguagem.
Traduzir-se uma parte na outra parte — que é uma questão de vida ou morte — será arte?

(Ferreira Gullar, Na Vertigem do Dia. 1980.)