sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Ei amigo,
preciso lhe dizer algumas verdades:
um dia você morrerá.
encontre-se com tua finitude.
cumprimente-a
respiras hoje como se fosse parar amanhã..
permita-se conhecer novos caminhos.
abra mão dos adornos
das máscaras habituais
dos luxos e dos lixos.
em meio a loucura,
conquiste a liberdade.
à frente da solidão
conhece-te a ti mesmo.
Voas longe!
não olhes para trás;
a terra é a tua casa.
tua casa é o teu lar
teu lar é a tua segurança,
a terra, a casa, o lar
são a sua vida.
A sua vida,
senha para outra vida.
O teu amor,
semente de luz e prosperidade.
Tenha, sempre que possível, olhar de criança..
Seja criança!
Não se esqueça de quem tu és.
Dance, pule, cante,
observe, procure, vá de encontro..
ao que beira o absurdo, o ridículo, o impossível -
seja o absurdo, o ridículo, o impossível..
o que os outros dizem
é o que eles dizem
o que voce pensa
é o que voce é.
Atente-se à natureza e à sua mensagem,
ela é velha e sábia
e mãe de todos nós.
Ouça os mais velhos,
mas
acima disso,
saiba criticá-los.
Meu amigo..olhe pro céu!
pise leve, ria alto, pense grande!
saiba por onde caminhas
mas
se não souber, ao menos,
respeite a grama que lhe acolhe.
por vezes, não penses tanto..
deixa-te levar pelo perigo
pelo momento
pelo fascínio
pela angústia
pela dor
de se ser
o que se é.
E, nessa busca infindável
Não trate de remediar o que o coração necessita
para crescer e
aprender com o tempo
as lições
que só dele pode extrair.
a vida é, de passo,
um luxo tão passageiro..
um quadro que se pinta
dia-a-dia
e se apaga,
a todo momento.
portanto viva!
e morres,
digno e solto
sem o receio de ter passado
despercebido
nessa viagem..

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

No aguardo

No aguardo da ida, nesse mar incessante do tempo,
clamo em letras,
o que o coração não aguenta ver.
Ou cala e remanesce;
ou aguenta e ressente.

Pois é simples estar vivo.
 - e para alguns até mesmo viver -
mas para um poeta, cujas palavras são expressões da alma,
e as dores do mundo são nós presos na garganta,
a vida é tudo,
menos simples.

É fugidia, volátil
passageira, traquina
é sublime, é instante
é pura poesia...

(e a poesia meus amigos, nunca é simples).

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Se eu desaparecesse agora
haveria alguém a lamentar minha ausencia?
e se passassem dias, meses, anos..
insistiriam ainda em me lembrar?

Se eu não tivesse medo
haveria de escrever como o faço?
ou seria, apenas, como a árvore
que faz a que veio e não perde tempo com lamúrias...

As vezes basta ser.
Mas as vezes ser somente não basta...

E se eu não sentisse dor
apreciaria o sabor do café pela manhã?
olharia para o céu -
nada mais que constelações distantes..

E se eu tivesse todas as respostas do mundo
ainda assim acordaria com aquele estranho sentimento
que me paralisa frente a uma flor, ou a um gato qualquer.

Me pergunto com frequência
se na vida há algum sentido:
força que impulsiona o ato
a vencer o medo, o receio de ser livre..

Então me vejo diante de um sonho
naturalmente fugidio, enganosamente tátil..
e dentro dele, vez ou outra, sinto-me vago
inutilmente real..
impossivelmente certo.
Não sei
Se a vida é curta
ou longa demais para nós.

Mas sei que nada do que vivemos
tem sentido,
se não tocarmos os corações das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
colo que acolhe
braço que envolve
palavra que conforta
silêncio que respeita
alegria que contagia
lágrima que corre
olhar que sacia
amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo
é o que dá sentido à vida.

É o que faz com que ela
não seja nem curta,
nem longa demais,
mas que seja intensa
verdadeira e pura
enquanto durar.

Cora Coralina

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Uma vela para Dario

      Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina, diminui o passo até parar, encosta-se na parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida de chuva. Descansa na pedra o cachimbo.
      Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move os lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque.
      Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de bigode pede aos outros se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe tiram os sapatos, Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca.
      Cada passo que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores da rua conversam de uma porta a outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor gordo repete que Dario sentou-se na calçada, soprando a fumaça do cachimbo, encostava o guarda-chuva na parede. Mas não se vê guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.
      A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a corrida? Concordam chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à parede - não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
      Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito peso. É largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobrem o rosto, sem que faça um gesto para espantá-las.
     Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozam as delícias da noite. Dario em sossego e torto no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
      Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficam sabendo do nome, idade, sinal de nascença. O endereço na carteira é de outra cidade.
     Registra-se a correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a rua e as calçadas: é a polícia. O carro negro investe a multidão. Várias pessoas tropeçam no corpo de Dario, pisoteado dezessete vezes.
     O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo - os bolsos vazios. Rsta na mão esquerda a aliança de ouro, que ele próprio - quando vivo - só destacava molhando no sabonete. A polícia decide chamar o rabecão.
     A última boca repete - Ele morreu, ele morreu. E a gente começa a se dispersar. Dario levou duas horas para morrer , ninguém acreditava estivesse no fim. Agora, aos que alcançam vê-lo, todo o ar de um defunto.
     Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as mãos no peito. Não consegue fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas um homem morto e a multidão se espalha, as mesas do café ficam vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.
     Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver. Parece morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
      Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-se às primeiras gotas da chuva, que volta a cair.

Dalton Trevisan

terça-feira, 3 de maio de 2016

A ocasião de um abraço

Pela ocasião de um abraço me desfiz suavemente
entre o meu toque e o sentir agia você
silenciosa, como a lua age sobre o mar.

A princípio as horas corriam
e de quando em vez tornava a te recompor
era linda a imagem que se desenhava em meus sonhos
quando em devaneios eu me perdia dentro de você.

E então fui aprendendo lentamente
a amar e ser amado
e aprendi que estou tão além deste objetivo
quanto a estrela mais remota da galáxia mais distante.

Pois na medida em que te amava
queria que o amor fosse aquilo que eu quisesse
essa forja de troca recíproca e sincera
e este foi o meu erro.

Pois quando se ama
ama-se. E pronto!
e o que se espera do outro além do amor
não pertence ao amar, pertence a você.