Escrevo estas linhas sentado num pequeno bar no centro de Porto
Alegre. É um estabelecimento simples e discreto, cuja entrada se esconde entre
prédios comerciais. Daqui posso ouvir o roçar das paredes umas de encontro às
outras, e, na rua, os passos apressados dos transeuntes matinais. Peço um café.
Ele chega. Pronto. Após o primeiro gole assento minha atenção no papel e
projeto o lápis em direção ao espaço em branco. Ele me olha, paralisa,
enfeitiça, confunde. Esta é a parte mais difícil, a introdução. Penso que devo
ignorar essas regras estéticas porque, afinal, escrevo por diversão. E percebo
que também tem ritmo, a escrita, a imaginação. É o amor em ação.
Mas então, eis que surge um homem me chamando a atenção.
(paremos de rimar por aqui) Puxa assunto com os olhos. Vejo a boca mover-se mas
ouço somente a música dos fones. Aceno igualmente com os olhos em gesto de
cumplicidade embora desviando-lhes com velocidade para que não ficasse impresso
a vontade do diálogo. Graças a empatia, porém, falhei, e a conversa iniciou-se
quase assim:
- 9 anos! 9 anos sem beber uma gota! Se me permito um copo
sequer, adeus! Dia três, ontem, completam nove anos de retidão alcoólica.
- Meus parabéns, disse-lhe.
- Meus parabéns, disse-lhe.
Sorriu na esquina dos olhos e fez gesto de cumplicidade.
Orgulhava-se enormemente do seu feito. Notei que, em certo sentido, precisa
ouvir isso. Sabia que, em última instância, as dores do mundo falam mais baixo
que as dores que residem no peito e que, neste ponto, partilhá-las é um caminho
para superá-las. Ao contar vitórias, retifica o mérito de sua nobre missão,
ainda que uma luta pessoal. Ao expor suas lutas encontrava nos elogios razões
para justificá-las. Com o jornal na mão transitava entre notícias e mantinha a
letra:
- Se, um dia, eu tomar uma colheirinha sequer; isto aqui -
indicava uma pequena quantidade entre o indicador e o polegar - já era!
Insistia em reafirmar o estatuto sofrido de sua vitória. Suas
razões eram pessoais, mas talvez justamente por se passar no âmbito da
subjetividade é que a sua batalha necessitava da objetividade alheia.
- Aqui, segure isto.
Entregou-me, no intuito de aniquilar a possibilidade de ser
mentira, um botão dos Alcoólicos Anônimos. Nele estava escrito seu nome, a data
em que havia ingressado e o período que fechava o ciclo de um ano a partir
desta data. Todo dia três, então, um botão diferente em cor lhe era dado.
Acredito que esta seja uma forma de prevenção. Na altura em que o desejo de
beber lhe convidava, o botão servia como um freio ao impulso. Sentia-lhe no
bolso e recordava o motivo dele se encontrar ali e todo trabalho precedente.
Elencava razões, lamúrias e, assim, se desprendia do amplexo alcoólico.
Todavia, segundo me constou em confidencias, os nove anos nos
quais havia permanecido sem nenhuma gota sequer não mantinham caráter de
veracidade. Inventava, em sua cabeça. Por que? De acordo com ele, o alcoolismo
é uma doença sem cura. Mal brabo, daqueles que só sai com macumba mesmo.
- Não existe remédio. É uma desgraça. Disse a mim, inconformado.
Ou melhor, conformado. Existia naquelas palavras alguma culpa.
Era como se justificasse sua derrota perante a sede:
- Passou-se um tempo em que, todos os dias, eu me punha a
acordar junto ao sol e sem delongas ia molhar o bico no bar do Cigano.
Neste momento, desenhou-me o mapa do trajeto imaginariamente
sobre a mesa com o dedo indicador. Sua casa ficava próxima a sua residência.
Passava ali mais tempo que no sofá. Chegava na penumbra, indiferente a quase
tudo e a todos. Olhava para o cigano e, com as mãos escondidas atrás das
costas, emitia sinal com os olhos secos. Após molhados, podia desesconder as
mãos trêmulas. Virava tudo num gole e, após alguns segundos, recaía na
realidade, embriaga e torpe.
- Uma rotina perigosa, expus.
- Verdade. E como era. Eu não tinha controle sobre a minha vida.
Comecei a perceber isso quando vi que já não mais tinha sequer o controle das
minhas mãos. Elas só paravam quando eu bebia. Remediava um problema com o
outro. As mãos que tremessem, não deveria beber para acalmá-las. Deveria mesmo
era ter parado de beber.
- Talvez voce não se visse como um alcoólatra naquela época.
Repliquei em tom de compreensão.
- Tem razão, disse-me, um tanto surpreso. E
voce, que faz da vida?
- Estudo filosofia...
- Eita rapaz, filosofia? E eu achando que eu é que tava mal!
- Ué, como assim?
- Tchê, essas coisas de filosofia, não é pra mim não. Até respeito, tenho um sobrinho que faz filosofia também, mas o guri só quer saber de fumar maconha.
- hahahaha, maconha é bom demais.
- Como? Tá doido, coisa do diabo, destrói a pessoa! Esses pobres coitados aí na rua que voce vê começaram fumando um baseadinho também..depois é a cocaína e por último o crack. Voce que faz filosofia devia saber disso.
- Não sei bem se foi assim que eles começaram. Muitos deles começaram pelo cigarro.
- Tá, mas o cigarro é normal.
- Normal?
- É, não tem problema, é liberado.
- Porque será né?
- Aí cabe a voce responder. Não é filósofo?
- Eu sei a resposta, estou sendo irônico.
- Então qual é?
- Porque a indústria do tabaco fatura milhões em cima disso.
- Hm..voce é bom mesmo hein.
- hahaha, se voce diz..
- É sério, certeza que fuma maconha? E essas tatuagens?
- São memórias estéticas.
- Memórias o quê?
- Estéticas. Visuais. É arte.
- Isso para mim é vandalismo com o corpo.
- Segundo quem?
- Jesus. O catolicismo condena qualquer tipo de mutilação corporal, faz mal ao espírito.
- É, talvez, mas eu não me sinto mal por isso. Não sou adepto ao catolicismo.
- Isso é porque voce fuma maconha.
- Quê?
- não acredita em Deus, tem tatuagem, faz filosofia..
- Epa, eu nunca disse qu..
- Ah que se dane, quer saber, toda essa conversa me deixou foi nervoso. Irvaldo, traz uma daquelas pra mim e pro nosso amigo?
- Estudo filosofia...
- Eita rapaz, filosofia? E eu achando que eu é que tava mal!
- Ué, como assim?
- Tchê, essas coisas de filosofia, não é pra mim não. Até respeito, tenho um sobrinho que faz filosofia também, mas o guri só quer saber de fumar maconha.
- hahahaha, maconha é bom demais.
- Como? Tá doido, coisa do diabo, destrói a pessoa! Esses pobres coitados aí na rua que voce vê começaram fumando um baseadinho também..depois é a cocaína e por último o crack. Voce que faz filosofia devia saber disso.
- Não sei bem se foi assim que eles começaram. Muitos deles começaram pelo cigarro.
- Tá, mas o cigarro é normal.
- Normal?
- É, não tem problema, é liberado.
- Porque será né?
- Aí cabe a voce responder. Não é filósofo?
- Eu sei a resposta, estou sendo irônico.
- Então qual é?
- Porque a indústria do tabaco fatura milhões em cima disso.
- Hm..voce é bom mesmo hein.
- hahaha, se voce diz..
- É sério, certeza que fuma maconha? E essas tatuagens?
- São memórias estéticas.
- Memórias o quê?
- Estéticas. Visuais. É arte.
- Isso para mim é vandalismo com o corpo.
- Segundo quem?
- Jesus. O catolicismo condena qualquer tipo de mutilação corporal, faz mal ao espírito.
- É, talvez, mas eu não me sinto mal por isso. Não sou adepto ao catolicismo.
- Isso é porque voce fuma maconha.
- Quê?
- não acredita em Deus, tem tatuagem, faz filosofia..
- Epa, eu nunca disse qu..
- Ah que se dane, quer saber, toda essa conversa me deixou foi nervoso. Irvaldo, traz uma daquelas pra mim e pro nosso amigo?
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